01 DE FEVEREIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS
A árvore e a ausência
Ela procurava um apartamento de dois dormitórios que não ficasse prensado entre outros prédios. Lavabo, mármore, suíte, nenhum desses luxos estavam na sua lista de exigências, nem seu orçamento permitiria, mas precisava se sentir acolhida pelo novo lar. Foi quando me disse que havia encontrado o apartamento dos seus sonhos. Perguntei onde. Ela deu o endereço: ficava na esquina de duas ruas movimentadas da cidade. Se vidros antirruídos não estiverem em sua lista de exigências, pensei, ela não levará a ideia adiante.
Não estavam, mas ela levou.
Pediu que fosse encontrá-la no apartamento para analisarmos juntas. Quando estacionei o carro, ela já estava na calçada em frente, me esperando. O corretor havia lhe entregue as chaves. Não tínhamos muito tempo, ela precisava devolvê-las. O prédio ficava na esquina de duas ladeiras. Carros zuniam na descida de uma delas, e quando viravam à direita, aceleravam fundo para subir a outra. Você tem certeza? Ela não me escutou. Mas sorria muito.
Subimos as escadas até o primeiro andar. Enquanto ela se desdobrava para encontrar a chave certa, perguntei: "A cozinha é boa?". Ela respondeu: "Acho que é". Ela já havia recusado outras opções de imóveis com cozinhas minúsculas, e agora achava que a desse apartamento era boa, sem demonstrar que se lembrasse dela. De onde vinha aquele sorriso de ganhadora da Mega Sena?
Abriu a porta e entrou primeiro. Entrei depois. Percebi de imediato o chão de tabuão. Não estava muito danificado. Olha, ela disse. Eu olhei. Havia uma janelão gigante na sala. E por trás dela, uma árvore do tamanho das nossas fantasias.
Aquele apartamento não precisaria de quadros. Muito menos da cortina que ela intencionava colocar. A árvore espetacular quase entrava sala adentro. Tudo mais era supérfluo. Cozinha? Que importava? (ainda assim, era espaçosa). "Agora você me entende?", ela perguntou. Pedi para ela repetir a pergunta por causa do barulho e só então respondi: entendo. À noite o trânsito diminuiria, nos fins de semana daria uma trégua. Mas a árvore estaria sempre ali.
Esteve ali por 11 anos. Mais valiosa do que um Van Gogh original. Até que semana passada, recebi o telefonema da dor. Ela caiu! Minha árvore caiu! Não foi pelas mãos do homem nem pela ação do vento. Velha, doente, cansada, a imensa árvore tombou de repente, por sorte não caiu em direção ao apartamento, mas pra fora, levando junto os fios de luz e os postes. Morte súbita.
Fui visitá-la. Pela primeira vez, vi a cortina fechada. Por que fechada? Pra não enxergar a ausência, ela me respondeu. Tinha razão. Eu nunca havia reparado no prédio do outro lado da rua, cinza, mórbido. Antes, havia o verde e a vida. O apartamento perdeu sua alma. A inquilina, inconsolável, se contenta, agora, com uma cozinha espaçosa.
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