01 DE FEVEREIRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
IDEOLOGIA
Este neologismo, que une as palavras gregas idea (ideia) e logia (lógica ou ciência), surgiu após a Revolução Francesa e evoluiu para designar o conjunto de crenças e concepções sobre a sociedade e o mundo, próprias para orientar opções e ações políticas. Em sociedades complexas, a palavra passou a designar também as metas específicas de grupos e classes e, logo, também dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Assim empregada, a palavra tem a virtude de dar identidade aos diferentes interesses em disputa, permitindo a cada cidadão reconhecer o que mais lhe convém e ao conjunto da sociedade. O termo "ideologia", portanto, não nasce condenado a representar cacoetes, mas, pelo contrário, a identificar e a organizar as relações sociais e políticas.
Não é concebível sociedade contemporânea destituída de ideologias, e é suspeitíssima a pretensão de qualquer grupo ou indivíduo de atuar na vida política isento destas. O argumento de isenção ideológica na política reflete ambições totalitárias ou teológicas, ou demagogia solerte, que acusa o outro de ser ideológico para aparentar que está a salvo e, assim, tentar enganar a sociedade para impor uma visão particular, repleta de interesses. É o que ocorre quando autoridades dizem combater ideologia e tratam de impor a sua própria. Para essa enganação, o discurso religioso serve perfeitamente, como fetiche de uma verdade que é antes ficção em favor dos sacerdotes e seus apaniguados.
As ideologias, todavia, podem abrigar erros, decorrentes de opiniões precárias ou do predomínio de interesses egoístas. Contra esses, contamos com a força de dois antídotos: a ciência e a política, quando visa ao bem comum. Sabe-se que a ciência pode ser manipulada por ideologias, e é por saber-se disso que a ética, o espírito crítico e a força do método nos permitem identificar e purgar erros e ideologias. Assim depurada, a ciência oferece à sociedade as referências seguras com que orientar decisões, superando a precariedade de opiniões e interesses particulares. Diante disso, atacar a ciência passa a ser outra face da estratégia de quem quer impor ideologias e só sabe proliferar enganos.
Por seu turno, a política orientada ao bem comum pode, em sociedades saudáveis, ser realizada por meio da dialética democrática ou por estratégias de quem detém o poder. Cabe ao vencedor a grandeza de estender sua sensibilidade ao que reivindicam os derrotados, ao invés de usar a força para tentar dizimá-los, de modo paranoico e tirânico. Aproveitar o que há de bom nas ideologias adversas é a chance de ampliar a harmonia e caminhar para a superação de impasses. Para isso, é necessário inteligência e grandeza, dons ora muito escassos. Do mesmo modo, as ideologias de classe, caso não evoluam para o bem comum, podem produzir violência, como hoje vemos, com a imposição da ideologia do capital sobre o mundo do trabalho.
Para sairmos da presente cacologia e dos embates de todas as ideologias, valham-nos a arte e a ciência das boas ideias, com que poderemos, um dia, escrever um novo capítulo da História.
Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | marshall@ufrgs.br - FRANCISCO MARSHALL
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