sexta-feira, 4 de outubro de 2019


04 DE OUTUBRO DE 2019
EDUARDO BUENO

A erva sagrada

Para alguns - justamente aqueles que faziam uso dela -, era a erva sagrada. Afinal, energizava, despoluía o organismo, deixava o dia melhor e mais limpo, abatia a tristeza e incensava a alegria. Mas, para outros - a maioria dos quais jamais sequer a havia provado -, era a "erva do diabo": a planta maldita, que entorpecia, viciava, fazia mal para o corpo e para o espírito. Firmes em sua convicção, esses lutaram com fervor para proibi-la, embora seu consumo milenar jamais houvesse causado nenhum problema a milhares de usuários. Entre os quais, aliás, parece que havia os que asseguravam consumi-la diariamente há décadas e, mesmo assim, nunca tinham se viciado...

Os guaranis a batizaram de kaá karai - ou folha sagrada: um presente dos deuses para a nação que a havia domesticado, plantado com paciência e ciência e a sorvia ao longo de séculos. Ela servia para matar a sede, enganar a fome e despertar a mente. Mas não adiantou. Tão logo os jesuítas chegaram ao Paraguai e ao Paraná para catequizá-los, acharam estar diante de mais erva diabólica. A voz da repressão gritou mais alto e em 1610 o padre Ruiz de Montoya excomungou a erva santa das Missões, tornando-a profana e sagrada num só gole.

Mas, tão logo aquela infusão mostrou-se capaz de arrancar do torpor os soldados e aventureiros e criadores de gado que vieram parar nos confins meridionais da América, eles se afeiçoaram a ela. Mas não entenderam bem o que os nativos lhes disseram, nem que bebida era aquela - e a chamaram de "mate". Mas "matty" era apenas a palavra quíchua para "cuia", o recipiente feito de porongo no qual é sorvido o chimarrão - a mágica infusão de erva-mate.

Vencida a resistência inicial, os padres acabaram deixando os índios seguirem com seu "vício", quando não sucumbiram a ele. E, assim que começaram a lucrar com o fruto dos ervais plantados em suas Missões, também passaram a considerá-la erva santa. E foi assim que o mate acabou se tornando, ao mesmo tempo, o chá, o café e o vinho do gaúcho, expandindo-se até virar um dos símbolos da altivez, da liberdade e da solidão dos "centauros dos pampas". Hoje, a erva-mate é indispensável na vida de vastos contingentes populacionais na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e no sul do Brasil. Muitos gaúchos - nativos ou adotivos - não vivem sem o chimarrão nosso de cada dia, quando não de cada hora...

Enquanto isso, outras ervas aguardam de bobeira na fila do legalize. Dizem que não são ligantes, como o mate. Mas, como ele, curam vários males.

EDUARDO BUENO

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