26 DE OUTUBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
O supremo tribunal da impunidade
Eram 7h15min da manhã de sexta-feira, aqui, no norte do mundo, quando ouvi a voz límpida do Daniel Scola contar a seguinte história, na Rádio Gaúcha:
Semana passada, em São Leopoldo, um ladrão roubou um carro com uma criança de um ano de idade no banco de trás. Os pais, obviamente, ficaram desesperados, transidos de angústia e dor. Mais tarde, o carro e a criança foram encontrados. Dias depois, a polícia capturou o ladrão e o conduziu à delegacia. Lá, ele prestou depoimento, foi liberado e seguiu para casa.
Não preciso explicar o quanto isso é errado. Qualquer pessoa, por estreita que seja sua mente, sabe que a impunidade estimula a criminalidade. Outros ladrões, que roubarem outros carros, com outras crianças dentro, não perderão tempo deixando que os pais retirem os filhos do banco traseiro. Levarão carro e criança, porque ficou claro, pelo exemplo do ladrão de São Leopoldo, que fazer isso "não dá nada".
Ao mesmo tempo, em Brasília, o Supremo se encaminha para instalar outra ferramenta de impunidade, proibindo a prisão de condenados em segunda instância. Trata-se de uma lei urdida para beneficiar criminosos ricos e poderosos, com condições de pagar advogados caros e arrastar um julgamento até as fímbrias do STF, o que, na prática, pode significar a prescrição do crime.
Neste caso, talvez seja necessário gastar algum latim explicando o quanto isso é igualmente errado. Porque há gente boa, de luzes e letras, argumentando que a Constituição determina indubitavelmente que ninguém será preso até que todas as instâncias o condenem.
Há algo que me escandaliza quando ouço essas pessoas falando: é o fato de que, para elas, a Constituição se equivale ao conjunto de regras de um jogo de tabuleiro. No xadrez, por exemplo, os cavalos só se movem em L, os bispos na diagonal e as torres em linha reta. Isso jamais mudará, porque precisa. O jogo é esse e ponto. Se você quiser jogar, aceite.
Mas uma nação não pode ser regida por regras inflexíveis, já que os povos mudam e suas necessidades mudam também. Defensores da tecnicidade jurídica argumentariam que, sendo assim, o Legislativo deve mudar a lei, porque essa tarefa não cabe ao Judiciário. Eles estão certos. Só que, no caso da prisão em segunda instância, o texto da Constituição dá margem a duas interpretações, tanto que o STF está dividido.
Então, o que me escandaliza é ouvir juízes, advogados e até ministros do Supremo reconhecerem que proibir a prisão em segunda instância é ruim para o país, mas acrescentar que eles são a favor disso porque é o que está escrito. Ora, se existem pelo menos duas interpretações diferentes, ambas sustentadas por argumentos sólidos, por que não optar pela que fará o Bem, com bê maiúsculo, à nação?
Leis existem para regular as relações sociais, existem para atender às necessidades DAS PESSOAS. Um juiz tem de estar atento a essas necessidades.
No Brasil, leis lenientes, interpretadas de forma ainda mais leniente, desequilibraram a sociedade. Há uma sensação de impunidade e de desrespeito às autoridades que começa pelo aluno que agride o professor, passa pelo ladrão de carros que leva o nenê que estava no banco de trás e termina no traficante que tem dinheiro para arrastar seu processo STF acima.
Essa nefanda impunidade não é a única causa da insegurança, mas é a maior delas. E sem segurança você não caminha pela cidade, você evita andar de ônibus, você tem de gastar com vigilância e estacionamento, você não frequenta parques e praças, você se tranca em casa e perde a rua. Resolvam os problemas de segurança pública e 60% dos problemas do Brasil estarão resolvidos. Os ministros do Supremo tinham a obrigação de compreender esse clamor do povo brasileiro. E votar pelo certo. Pela lei que promoverá o Bem.
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