sábado, 12 de outubro de 2019



12 DE OUTUBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

A MORTE DE SÓCRATES

Em 399 a.C., Atenas cometeu um dos mais sórdidos crimes da História, a execução de Sócrates. Como pôde uma cidade democrática, em que há lugar precioso para a liberdade, a vida das ideias e as garantias judiciais, condenar um homem de pensamento, bom cidadão?

O evento foi examinado por Platão em quatro obras: Êutifron, Apologia de Sócrates, Crítias e Fédon. Na Apologia, Sócrates apresenta sua defesa diante do júri de cidadãos da Heliaia, o tribunal popular, acusado de perverter a juventude e de impiedade, por introduzir novas divindades. A Apologia é o primeiro monólogo da história da literatura, diverso do estilo que consagrou Platão, o diálogo. É um texto trágico, onde vemos o homem debater-se diante de destino incontornável. 

Em grande parte ficção composta por Platão, é nesse livro que apareceria a frase atribuída a Sócrates, "só sei que nada sei", paradoxo que põe em contradição saber e não saber, pois se nada sabe, não pode saber nem que não sabe. A sentença original, todavia, não contém paradoxo, apenas refere o principal argumento da defesa, de que ele se tornou antipatizado ao tentar encontrar, sem sucesso, algum ateniense que detivesse saber verdadeiro. Diz então que um de seus arguidos: "Sem saber nada, imagina que sabe, mas eu, sem saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo" (Apologia, 21d).

Sócrates sabe, sim, que nada pode diante da opinião pública adversa, e que seu julgamento é uma farsa, em que triunfam alegações sem evidência, para saciar aos rancores de homens ultrajados por sua virtude. Para piorar, o réu provoca os jurados com sua insolência (hybris), dizendo que deveria ser, ao invés de condenado, sustentado pela cidade. O monólogo termina mostrando um filósofo que aceita o destino trágico e prepara-se para a morte, tema do diálogo Fédon, em que Sócrates bebe cicuta enquanto argumenta acerca da imortalidade da alma. Antes disso, no Críton, discute sobre a justiça e recusa a chance de sair da prisão indevidamente.

Há fatos políticos graves por trás da condenação de Sócrates. O regime democrático enfrentou, desde sua origem, a oposição de parte da aristocracia ateniense, os eupátridas (bem nascidos). Sócrates vivia sustentado por esse grupo, que realizou o golpe de Estado de 411 a.C., instituindo um regime tirânico, liderado por Crítias, aluno de Sócrates, e que executou sem julgamento centenas de atenienses. Com a restauração da democracia, e após Atenas perder para Esparta a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), iniciou-se a caça às bruxas, e o mestre era visto como o guru do grupo antidemocrático. O clima era contra Sócrates, que já havia sido ridicularizado por Aristófanes como líder de alienados e promotores de cacoetes, na comédia As Nuvens (423 a.C.), origem do discurso antiacadêmico.

Anos depois, revoltado com o que Atenas fez com seu mestre, Platão escreveu seu célebre ataque à democracia, a República, em que defende o governo autocrático do rei filósofo, a resposta ao regime que matou pensador. Quem morreu com aquela condenação injusta, o réu ou a democracia?

FRANCISCO MARSHALL

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