19 DE OUTUBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL
Na última quarta-feira, comemoramos Santa Edwiges, padroeira dos endividados. Um dia após nosso Dia do Professor. Sintomático. Não é raro imaginar quantos de meus colegas estão fazendo novena ou com os olhos marejados enquanto se digladiam com planilhas do Excel, tentando equacionar o salário até o fim do mês, neste exato momento.
O Brasil tem cerca de 25 milhões de superendividados, ou seja, pessoas que devem mais do que a soma de seus rendimentos e patrimônio. Em outras palavras, "faliram" sem a menor condição de conseguirem sair dessa situação. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostra que mais de 60% dos brasileiros têm alguma dívida e que quase metade desse contingente deixará alguma parcela em aberto ainda neste mês. O ano passado terminou com mais de 60 milhões de pessoas com o "nome sujo" na praça.
A situação é uma perversa combinação da crise econômica com uma lógica de juros altos, oferta de crédito abusiva e falta de educação financeira.
A saída é difícil, longa e requer começar agora. Começando pelo último fator: escolas e famílias deveriam educar financeiramente as próximas gerações. Sem sermos hipócritas ou apelarmos para uma ideologização tola do que estou propondo, esse tipo de educação instruiria para entender o fluxo de dinheiro: não se pode gastar mais do que se ganha; o que é e como funciona um salário; como é o sistema bancário; que uma parcela de uma compra pode caber no meu salário, mas o somatório de várias pequenas parcelas corrói meu poder de compra; o que é endividamento; a lógica dos juros; planejamento de aposentadoria; como planejar e executar compras de bens mais caros do que o ordenado etc.
O professor e a família têm liberdade para ter uma visão liberal, conservadora, progressista, socialista, keynesiana ou qualquer outra sobre economia, porém devemos pensar e ensinar às próximas gerações a pensar economicamente suas próprias vidas.
Alguma regulamentação sobre ofertar créditos para quem já está endividado deveria ser revista. É inumano cobrar juros impagáveis de quem já não consegue pagar o boleto sem atraso. Economistas de todos os espectros políticos são unânimes em apontar o Brasil como um país paradisíaco para a usura. Permitimos juros desarrazoados por aqui.
Mesmo se eu for alguém com mentalidade empreendedora e quiser contrair um empréstimo para começar um pequeno negócio, se não ler as letras miúdas do contrato a ser assinado, posso virar estatística: a inadimplência de micro e pequenas empresas bateu recorde em março deste ano, segundo dados da Serasa Experian. Essa dívida representa 95% do total das empresas inadimplentes no país. Ou seja, há algo errado entre nosso discurso que encoraja o pequeno e microempreendedor e a prática que temos de endividamento.
O mais complicado é contornar a crise econômica. Isso não tem fórmula clara, pois, se já houvesse, estaríamos usando. Depende de o mundo voltar a crescer, de EUA e China abaixarem as machadinhas, de acordos internacionais serem honrados e bem negociados, de estimular a produção e o consumo com responsabilidade por aqui, reformar o Estado... A lista de variáveis é longa e cada projeto político funciona como uma alternativa de norte magnético.
Houve quem atribuísse nossa falta de educação financeira à tradição católica lusitana. Quando temos recursos (ouro, diamantes etc.), gastamos a mancheias e fazemos mosteiros e palácios. Quando acaba, ficamos à mercê de empréstimos ingleses. A poupança, diria Weber, é virtude calvinista e não papista. Outros lembram que o gasto tem uma tensão psíquica entre o prazer imediato e o de médio e longo prazo.
Conter gastos é conter prazer, e isso pode ser um desafio. Alguém também lembraria o dado de que a sobrevivência básica (comida essencial, aluguel etc.) não é coberta pela renda de toda a família somada. Assim, não se trata de educação financeira, mas endividar-se para comer mal e pouco. Tudo isso pode ser desenvolvido. Notemos, contudo, que o endividamento atinge pessoas das classes A e B também e que a compra de coisas menos essenciais como celulares ou eletrônicos, em geral, constitui uma fonte constante de protestos judiciais e corte de crédito. Educação financeira é um desafio para todas as classes sociais.
Filhos de ricos e filhos de pobres precisam de educação financeira urgente e intensa. Se há muito dinheiro na família, o que fazer para mantê-lo e expandi-lo. Se é escasso, o que fazer para obtê-lo? "Você é sócio da Light?", perguntavam mães aflitas aos filhos do século passado em São Paulo. Era uma forma de ensinar o custo das coisas, energia inclusive. Administrar uma pequena quantia é o início de um processo educativo.
Como toda educação, tem método, paciência, repetição, somados a paciência. Você levou ao menos 15 anos para obter a plena educação da higiene bucal da sua prole. Saiba: é mais fácil escovar dentes do que ensinar a gastar com habilidade. Que Santa Edwiges e Santo Adam Smith nos ajudem nas trevas do custo de vida. É preciso ter esperança e muita paciência.
LEANDRO KARNAL
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