sábado, 26 de outubro de 2019



26 DE OUTUBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Vendendo a alma ao Diabo

Quando jovem, num momento de desespero, tentei vender minha alma ao Diabo. Estava em um buraco, não enxergava saídas, a vida parecia um túnel angustiante sem fim e sem propósito. Sentia-me enterrado vivo, privado de vislumbre de mudança.

Quando sentimos que nada temos a perder, cometemos os maiores desatinos e foi o que fiz. Ou melhor, tentei fazer. Poupo-lhes dos detalhes sórdidos de como cheguei ao medonho. Mas em uma manhã de inverno, em que o frio de fora combinava com o da minha vida, nos encontramos. Ele se mostrava simpático e solícito, mostrou-me as vantagens e desvantagens da transação, tudo muito profissional.

A questão veio no preço, minhas vantagens seriam uma mixórdia. Teria um reinado minguado, praticamente ridículo. Perguntei-lhe sobre a desproporção e ele foi franco. Disse que eu era uma alma de baixa cotação. Acrescentou: "Você é sem carisma, sem refinamento, sem currículo, sem estilo próprio. Você é um ressentido - isso apreciamos - mas é sem qualificação maléfica. Dado isso, é o que o mercado tem para oferecer".

Quis retrucar, mas ele em poucas palavras fez uma brevíssima síntese da minha história. Era aterrador ouvir, e era tudo verdade. Não havia exagero, não era conversa de vendedor, barganha tola. Tanto que até me aconselhou: "Talvez não seja a hora de te vender, melhor esperar já ter realizado algo, então, quem sabe, daria para conseguir melhores vantagens. Agora não saberia como te aproveitar. Teria que te treinar, e isso é custo".

A humilhação não parava. Demonstrou detalhadamente como não serviria para a linha de frente da maldade por ser frouxo. Faria no máximo um trabalho secundário de retaguarda.

Quase sem voz, perguntei se me indicava um rumo para uma futura melhor classificação. "Informática. Estamos com um pressentimento de que por ali teremos grandes oportunidades para o mercado de ódio."

Ele foi levantando-se, fez questão de pagar o café e deixou uma gorjeta generosa para o garçom.

Como último conselho, já saindo: "Estamos interessados também em desenvolvedores de algoritmos para comportamentos. Faz parte de um projeto maior de desumanização. Tens o meu número, se aprenderes é só ligar".

Não foi um inverno fácil. O que era pior: saber do meu valor insignificante ou que nem o Diabo se interessava por mim?

É uma amostra grátis do inferno sabermos o que valemos e não o que pensamos que valemos. Ou seja, conseguir olhar desapaixonadamente para dentro. Enxergar o pedacinho de nada que somos.

Não voltei a procurar o tinhoso, temo ouvir outra vez meu preço. Mas o encontro rendeu. Crescer é livrar-se da ilusão de sermos talentos desperdiçados, boicotados. Talento e ressentimento não coincidem. Encarar minha desimportância cósmica foi vital. Valeu, Diabo!

MÁRIO CORSO


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