sábado, 12 de outubro de 2019


12 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Alma antiga

Tenho hábitos de velho, extravagantes para os filhos e a esposa. Eu curo tristezas comprando material em tabacaria. Levo aqueles lápis muito apontados, que se assemelham a cavaleiros medievais, de armadura e lanças, prontos para o combate. Arrebato ainda caderninhos bonitos, portáteis, próprios ao tamanho dos bolsos, para me perder desenhando e escrevendo. 

O cheiro do grafite e do papel me dá novo ânimo. Ter folhas em branco é uma lição de esperança: como se estivesse adquirindo dias que nunca foram usados. Retorno à época em que era estudante e o ano letivo começava cheio de pressentimentos. Cadernos são calendários inéditos. Amplio a extensão de meu coração deixando algo a ser preenchido para depois.

Eu também encarno aquele tipo que escuta música clássica para boiar nas lembranças. Deito no sofá com Mozart, Beethoven e Olivier Messiaen tocando alto na vitrola. Fico pensando à toa, sem mexer em mais nada, sem sentir mais nada, a não ser a minha respiração soletrando os compassos. Quando a família me encontra assim, acredita que estou mal. Pelo contrário, a solidão só me faz bem. Reviso os meus atos, os últimos acontecimentos, cochilo e acordo em alguma fantasia, peço desculpa a alguém em segredo no passado, agradeço por ser sincero comigo.

Gosto igualmente de cuco, para me certificar de que está vivo e funcionando. Eu me divirto conferindo a corda dele ao longo da noite. Um relógio que tem uma estatura maior do que a minha passa a segurança de mais um parente dividindo o teto. O tempo não deixa de ser uma pessoa.

Não abro mão dos casaquinhos de lã ao entardecer. Mesmo que não combinem com o que venho vestindo, aprecio essas mantas de botões cobrindo os meus ombros. A brisa nunca me pega desprevenido.

Prefiro um brechó a uma grande loja de novidades, prefiro um museu a uma praça lotada. Sou cada vez menos filho de meus pais, cada vez mais irmão deles. Acredito que sempre fui uma alma antiga, a diferença é que me encontro mais parecido por fora com o que levo dentro.

Mas todo mundo de casa acha que exagerei em meu envelhecimento precoce quando comecei a pedir tônica com limão e gelo nos restaurantes.

- Não conheço gente com menos de 60 anos que tome tônica - reclamou Beatriz. Tentei explicar para a minha esposa que ela apenas tem a ganhar com o meu gosto amargo. Perto de mim, ela vive rejuvenescendo. Já é uma adolescente.

CARPINEJAR

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