segunda-feira, 21 de outubro de 2019



21 DE OUTUBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O se está a perigo

Estão acabando com o se. Sei que há coisas mais importantes a se preocupar, como as traquinagens do Supremo; sei que há muitas ameaças de extinção alarmantes, como a das baleias, que voltaram ser perseguidas pelos japoneses, mas a decadência do se me incomoda como se fosse um ataque pessoal.

E, de certa forma, é. Porque Fernando Pessoa estava certo: a língua é a nossa pátria. Mais: uma mudança na língua pode mudar a nossa vida.

O se a que me refiro é a partícula se, mais especificamente o pequeno pronome que, não raro, dá delicadeza e sentido à frase. Exemplo: "Leonardo Gomes MACHUCOU-SE, e agora Renato será obrigado a improvisar na lateral, porque, se escalar Leo Moura ou Galhardo, será goleado pelo Flamengo".

É com o primeiro se que me preocupo. Porque as pessoas não querem mais saber dele. Elas falam: "Leonardo Gomes machucou". Ora, isso torna a sentença irritantemente imprecisa. Se informo que Leonardo Gomes machucou, você poderá perguntar:

- Machucou quem? Aí eu terei de me manifestar de novo: - Machucou a si próprio.

Um minúsculo e modesto se, portanto, nos poupa de conversas inúteis. Detesto conversas inúteis.

Isso é coisa dos cariocas, com sua ânsia por irreverências linguísticas.

Sei bem que a língua portuguesa é viva e, como qualquer ser vivo, está sempre mudando, mas há cláusulas pétreas na sua constituição e essas, por serem exatamente duras de pedra, não podem ser quebradas de jeito nenhum. Se tocarmos no que não pode ser tocado, podemos ter problemas sérios na vida prática, inclusive com más interpretações de cláusulas supostamente pétreas de outras constituições.

Aí volto às traquinagens do Supremo. O que se discute lá, nessa semana, não é nada além de interpretação de texto. Todo o estudo a que se submeteram aqueles juízes venerandos, toda a sua experiência, todos os debates Brasil afora, tudo o que pode acontecer de bom ou de ruim com o país depende da forma correta como for usada a última flor do Lácio, inculta e bela: a Língua Portuguesa.

Porque na Constituição de 1988 está escrito assim:

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Essa é uma cláusula preocupantemente pétrea. Mas repare que a Constituição não diz que ninguém "será preso" até o trânsito em julgado. Se dissesse, seriam impossíveis as prisões preventiva e provisória, por exemplo. Assim, está claro que um condenado em segunda instância pode esperar pelo julgamento de seus recursos na cadeia, como medida de preservação da sociedade.

Corremos o risco de dar aos criminosos ricos e poderosos o privilégio de infringir a lei sem jamais serem punidos só por um detalhe de aparência irrisória, só por um texto impreciso. Veja como a correção da Língua Portuguesa é importante. Veja como temos de nos preocupar com o se. Brasileiros, uni-vos nesta causa santa: salvemos o se!

DAVID COIMBRA

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