terça-feira, 28 de fevereiro de 2017



28 de fevereiro de 2017 | N° 18780 
CARPINEJAR

Garagem da minha alegria


Na escola, tinha dois amigos: o Betinho, que residia num casarão com piscina na Rua Lajeado, e o Ricardo, que dormia numa garagem na Rua Carazinho.

A turma se encontrava com frequência na casa de Ricardo e jamais pisou o pé para dentro do portão da mansão de Betinho – só imaginávamos como deveria ser espiando pela entrada das cercas altas.

Ricardo morava numa garagem de carro transformada em apartamento. Era uma única sala-cozinha, banheiro e dois quartos, aposentos separados por cortina de box de banheiro. Podíamos ver tudo o que acontecia logo na porta.

Sentávamos na cama dele e no chão. Dez crianças no contraturno da escola. Jamais se fazia de rogado para nos receber. Se havia feijão na mesa, nos convidava para almoçar. Cada um com um prato diferente. Já comi feijão ali numa caneca de café por absoluta ausência de louça suficiente. A mãe dele gostava de ver os meninos e meninas perto, providenciava limonada para animar a conversa. Eles tinham tão pouco, mas repartiam igualmente com a gente. Armávamos campeonato de futebol, trocávamos figurinhas, passávamos a limpo os cadernos juntos e nos ajudávamos nos temas. Dividíamos a bolacha Maria em três pedaços para atender a todas as mordidas.

Num espaço para dois carros ocupado por poucos móveis, estacionávamos a nossa felicidade. Não via o tempo passar porque a extensão do lugar aumentava na cordialidade das pessoas. Eu me sentia importante pois sempre era tratado como alguém da família.

Por sua vez, insistíamos para conhecer a casa de Betinho e ele sempre dava uma desculpa. Mentia que não estava na sua residência – várias vezes apertávamos a campainha e ninguém atendia, apesar das vozes e latidos nítidos no pátio. Seus pais não desejavam que o seu filho se misturasse a diferentes classes sociais ou padeciam de receio de indiscrição, roubo ou que algo de valor se quebrasse em nossa passagem. Nunca saberemos.

Ele vinha a ser quem mais desfrutava de condições para nos acolher (contava com empregada uniformizada) e terminava sendo o menos receptivo. Foram oito anos sem nenhuma visita. Isso que sua merenda destoava da nossa tradicional de suco, maçã e fatia rala de pão: sanduíche gordo de ovo e presunto. O único a beber refrigerante no intervalo. O único a realizar cálculos com calculadora. O único que um motorista buscava na saída da aula.

O excesso de um lugar incomodava, a falta do outro aproximava. Enquanto o dinheiro afastava e produzia medo da convivência, a penúria improvisava e multiplicava a sua ternura. Até hoje guardo esta impressão: casa de rico vive vazia, casa de pobre vive cheia.



28 de fevereiro de 2017 | N° 18780
CAPA

#OscarsTãoConfuso

EM MICO HISTÓRICO, anúncio do nome errado do ganhador de melhor filme encerrou a noite de premiação, marcada por declarações contra o presidente Trump

Não houve surpresas no Oscar 2017: os favoritos La La Land: Cantando Estações e Moonlight: Sob a Luz do Luar levaram os principais prêmios, as piadas e os discursos denunciaram as atitudes e declarações do caricato presidente norte-americano Donald Trump, as mulheres estavam glamourosas em seus vestidos decotados, a cerimônia foi longa e aborrecida. Tudo dentro do roteiro não fosse a confusão armada no final com Warren Beatty e Faye Dunaway na hora de revelarem o melhor filme: o nome anunciado por eles foi La La Land, mas na verdade o ganhador era Moonlight os veteranos atores receberam um envelope errado. 

A equipe do musical já tinha subido ao palco quando o erro foi constatado, provocando uma situação constrangedora e jamais vista antes na história do principal prêmio do cinema mundial. Mais tarde, a PricewaterhouseCoopers (PwC), responsável pela auditoria da contagem de votos do Oscar desde 1935, assumiu a responsabilidade pela gafe. Como dois funcionários da empresa ficam sempre postados nos cantos do cenário, cada um com uma maleta contendo todos os envelopes com os vencedores e que são entregues por eles aos apresentadores, supõe-se que um deles tenha passado por engano para Beatty uma das duas cartelas do prêmio de melhor atriz, em que estava escrito o nome de Emma Stone e do filme pelo qual concorria, La La Land a outra ficou com a própria estrela.

Em uma seleção de filmes muito bons mas não exatamente arrebatadores, cumpriu-se apenas o protocolo de ecoar as escolhas de premiações anteriores e listas de melhores da temporada. A única dúvida do Oscar era saber como os votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas iriam contemplar os dois grandes finalistas dessa 89ª edição – a cativante homenagem aos musicais e, por extensão, à fábrica de sonhos hollywoodiana representada por La La Land e a comovente história sobre aceitação sexual e denúncia racial e social do drama Moonlight. Salomonicamente, as estatuetas foram divididas: La La Land levou seis prêmios (disputava 14), incluindo direção, atriz, fotografia, trilha sonora e canção original, enquanto Moonlight ganhou melhor filme, ator coadjuvante e roteiro adaptado – concorria em oito categorias.

Estreando no comando da festa, o comediante e apresentador de televisão Jimmy Kimmel entrou em cena depois da abertura em que o cantor e ator Justin Timberlake interpretou a música do desenho Trolls no meio do público, remetendo a La La Land. O mestre de cerimônias fez a primeira referência política da noite ao dizer que o programa estava sendo transmitido para mais de 240 países “que agora nos odeiam”. 

O tom crítico, aliás, perpassou toda a transmissão – tanto em depoimentos explicitamente contra Trump quanto em momentos mais sutis, como no simpático clipe ecumênico em que pessoas de diversas nacionalidades, incluindo os atores brasileiros Lázaro Ramos e Seu Jorge, falaram sobre paixão pelo cinema e citaram seu filme norte-americano favorito.

Em vez de endossarem o Globo de Ouro e o César e escolherem como melhor atriz pelo filme Elle a francesa Isabelle Huppert, uma das maiores intérpretes do cinema atual, os eleitores do Oscar preferiram contemplar o trabalho competente mas nada excepcional da graciosa Emma Stone em La La Land. Ainda que meritória, a estatueta de Casey Affleck – ator também destacado pelo Globo de Ouro com Manchester à Beira-Mar – talvez ficasse em melhores mãos com Denzel Washington, cuja performance em Um Limite Entre Nós, drama que também dirige, é um legítimo tour-de-force.

Apesar do páreo duro, Mahershala Ali, de Moonlight, e Viola Davis, de Um Limite Entre Nós, confirmaram as apostas em seus nomes e venceram como ator e atriz coadjuvantes, respectivamente. Um reconhecimento ao talento dos artistas negros, que tinham ficado de fora dos finalistas em 2016, motivando nas redes sociais o protesto #OscarsSoWhite. 

Por falar em visibilidade na festa, quatro dos cinco concorrentes de documentário em longa-metragem eram afrodescendentes, sendo que a temática de três desses filmes era ligada à segregação racial. A vitória do épico de quase oito horas de duração O. J.: Made in America prestigiou o monumental trabalho de reportagem do filme sobre o ex-atleta e ex-ator O. J. Simpson.

Vencedor do Globo de Ouro de filme estrangeiro, Toni Erdmann perdeu o Oscar da categoria para o iraniano O Apartamento. O cineasta Asghar Farhadi – que já havia levado a estatueta dourada em 2012 por A Separação – não foi à festa, mas mandou um discurso de agradecimento em que deplorou a decisão do governo norte-americano de impedir a entrada no país de cidadãos de vários países de maioria muçulmana, afirmando que esse tipo de atitude é o que provoca a divisão entre os povos e as guerras. 

Já a vitória do longa de animação Zootopia – Essa Cidade É o Bicho, logo depois que o ator mexicano Gael García Bernal declarouse contra qualquer muro que separe as pessoas, foi outro recado a favor da tolerância e contra o reacionarismo: no filme da Disney, predadores e presas vivem juntos e em harmonia.

roger.lerina@zerohora.com.br


28 de fevereiro de 2017 | N° 18780 
PIANGERS

Gente sem filho


Quem não tem filhos, aff. Essas pessoas que têm o sábado à noite livre, que podem beber até tarde com os amigos, essas pessoas que não têm que correr pra creche depois do trabalho. Pessoas que não ficam malucas durante as férias escolares. Que vida é essa?! Não acordar de três em três horas todas as noites, não limpar xixi no colchão. 

Não passar quatro horas tentando fazer seu filho comer uma colher de arroz e feijão. Essas pessoas que têm tempo pra ver séries inteiras da Netflix de uma só vez. Essas que assistiram a todos os filmes do Oscar – todas as animações, os curtas-metragens e até os documentários iranianos! Losers, isso sim. Aff, gente sem filho, esses que nos olham feio quando nosso anjo chora no avião ou se joga no chão do supermercado pedindo salgadinhos. Não sabem eles o que é bom.

Me flagrei disso esses dias, quando minha mãe veio passar uma temporada na nossa casa. Uma avó pra ajudar com as crianças, quem precisa disso? Nós conseguimos nos virar sozinhos, com crianças correndo pelo restaurante japonês, espirrando shoyo em nossas calças brancas. Mas, ok, se temos uma avó por perto, vamos aproveitar pra sair sozinhos, uma noite a dois pode ser agradável. Fazia tanto tempo que não saíamos. Acho que estávamos até meio desatualizados, ela de ombreiras e eu de pochete. Nosso papo girou em torno do enredo do Barrados no Baile e se o Aerosmith ainda estava ou não na ativa.

Casal com filhos perde a noção dos lugares mais legais. Ainda está badalado o Encouraçado Botequim? Será que conseguimos curtir um show no Garagem Hermética? Acionamos grupos de WhatsApp, listas de transmissão, “E aí, qual é a boa, pessoal? Cadê a galera?”. Ninguém respondia. Amigos com filhos estavam no sofrimento habitual, lutando com as crianças pra que dormissem antes da meia-noite. Amigos sem filhos, essa gente desagradável, bebendo e rindo alto em algum terraço da cidade. 

Se temos uma avó por perto nesta rara ocasião, uma possibilidade de ver um filme novo do Woody Allen no cinema do Moinhos Shopping, só nós e um pessoal muito agradável e educado. Faixa etária na casa dos 70 anos, o cinema do Moinhos é ótimo pra vermos como seremos daqui a algum tempo, quando nossos filhos forem formados e tiverem se mudado para uma cidade mais interessante. Ligarão somente no Natal.

Depois do cinema, acabamos sozinhos no restaurante na esquina de casa, ligando de meia em meia hora pra minha mãe pra saber se estava tudo bem com as crianças. Estava, é claro, nossos filhos estão sempre melhores com nossos pais do que conosco. Quando um amigo sem filho respondeu a mensagem do WhatsApp nos convidando para ir até uma festa em um bar da Cidade Baixa, avaliamos se seria prudente, a violência é crescente e não queremos deixar nossa prole sem pai nem mãe. Será que conseguimos um colete à prova de balas emprestado? “

Achei que vocês nem moravam mais na cidade”, disse o amigo sem filho, mesma idade que a gente mas um corpo atlético e um sorriso constante, nem um fio de cabelo branco. Nos empurrou alguns drinques da moda, desses que misturam todo tipo de destilado, aparentemente não se toma mais um simples gin tônica moleque. Língua grossa, o motorista do Uber jamais entenderia nosso endereço na volta, que bom que o aplicativo já sabia onde morávamos.

No lar, todos dormiam, janta e banho tomado. Enquanto eu botava o pijama e o quarto girava, minha esposa devolvia os drinques de R$ 23 para a privada, enquanto nosso amigo mandava mensagens do tipo: “Onde estão vocês?! Ainda é muito cedo! Vamos para outra festa!”. Já eram onze e meia da noite de um sábado, teríamos um domingo com crianças pulando em nossas barrigas às oito da manhã. Crianças nos abraçando e abrindo nossos olhos com as mãos. Trazendo Neosaldinas e copos de água. Achando graça dos pais imprestáveis, no dia seguinte de uma grande aventura, cada vez mais rara.

David Coimbra está em férias e retorna no dia 6 de março. Neste período, se revezarão neste espaço Fabrício Carpinejar, Nílson Souza, Cláudia Laitano, Marcos Piangers e Mário Corso.



28 de fevereiro de 2017 | N° 18780 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

CLEMENTINA, FIGURA MAIOR

Assim que li o anúncio, saí correndo a encomendar, na Bamboletras, a biografia Quelé, a Voz da Cor – Biografia de Clementina de Jesus, saída agora pela Civilização Brasileira, de autoria múltipla – Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz. Como o prezado leitor sabe, trata-se de uma das figuras mais impressionantes da cultura brasileira no século 20.

Não foi criadora, não compôs sambas novos; sua força vinha diretamente da experiência de vida – neta de escravos, nascida em Valença, interior do Rio de Janeiro, de pai trabalhador manual e de mãe rezadeira e faz-tudo – , de sua impressionante performance de canto e dança ao interpretar canções tradicionais aprendidas pelo método mais tradicional do mundo, a audição compartilhada comunitariamente, e, terceiro fator, de uma jogada da sorte.

Nascida em 1901 e falecida em 1987, ela viveu como empregada doméstica e quituteira até os 63 anos de idade (com filhos e netos e toda a dureza que se pode imaginar), quando foi vista cantando numa festa religiosa por Hermínio Bello de Carvalho, poeta e produtor artístico. Daí pra frente, e apenas daí pra frente, ela passou a fazer shows, a gravar, a ser ouvida para além dos estreitíssimos limites de sua comunidade familiar. Se o leitor não quiser ir além, vá pelo menos ao youtube ouvi-la ao lado de Pixinguinha e João da Baiana. E depois me diga. Ou nem diga nada.

Pena é que a biografia não é boa. Talvez por ter sido escrita por tanta gente, o texto é muito desigual e repetitivo, com enquadramentos históricos e contextuais defeituosos, e, no fim das contas, consiste apenas em uma costura entre reportagens e comentários sobre sua obra. 

Chama a atenção o descuido editorial, que não providenciou um copidesque. Exemplo: “A freguesia de Jacarepaguá era a de maior população escrava no município da corte, situação que se agravou após a Lei Áurea em 1888” (p. 36). Como é: houve incremento da população escrava depois de 88?

Agora, engolindo essas falhas, que não são poucas, ali está a vida de uma grande figura brasileira.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017



27 de fevereiro de 2017 | N° 18779
ARTIGOS

SÃO CLEMENTE

Numa segunda-feira de Carnaval, não vou mergulhar no mar revolto do juridiquês. Deixo de lado o habeas corpus do goleiro Bruno, examino mais tarde a troca de ministros, nem penso em Lava-Jato e reservo a Quaresma para saber dos meandros do processo legislativo que vai mutilando o pacote anticorrupção em Brasília.

Vou cuidar do enredo da São Clemente, a segunda escola de samba de hoje à noite na Sapucaí. A genial Rosa Magalhães, carnavalesca integrante do time de artistas que Fernando Pamplona formou e orientou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, criou o enredo luxuoso que veremos logo mais. Versailles, seu palácio e seus jardins, as mesuras de damas e cavalheiros que paparicavam o Rei Sol, Luís XIV de França, todas as mazelas de uma corte corrupta e devassa, a ocultação das vergonhas daquele tempo e daqueles lugares.

Rosa vai mostrar um casamento que uniu a França à Áustria, mas fará muito mais. Contará a verdade sobre Nicolas Fouquet, fiel parceiro do soberano, que cuidava das finanças do tesouro do país, mas ainda cuidava bem mais dos seus próprios tesouros. Enquanto trabalhava para amealhar e esconder o resultado de obras superfaturadas e propinas, comprou um imóvel nos arredores de Paris, que precisava de algumas reformas. Visionário, este senhor fez surgir o Palácio de Versailles, preparando a seguir uma festa jamais vista para o Rei Sol promover a inauguração. 

Os outros detalhes vou convidá-los a descobrir na hora do desfile, seja pela televisão, pelo rádio ou pelas demais plataformas digitais. Estaremos lá, com toda a equipe da Gaúcha, “a mais carnavalesca do rádio brasileiro”, como a nomeou o saudoso Jamelão. E vamos descobrir juntos o que Rosa Magalhães vai aprontar. Depois de um belo desfile da sempre alegre São Clemente, quando suas últimas alas estiverem cruzando a Passarela do Samba, perceberemos que em outros lugares e em outros tempos muitas histórias semelhantes aconteceram. Talvez o final seja um pouco diferente. 

O Rei Luís XIV mandou prender o ajudante corrupto, acusando-o de malversação do dinheiro público. E vai aparecer na cadeia, em pleno desfile. Como diz Rosa Magalhães, antes de assinar a sinopse de seu enredo: “Essa história aconteceu há muito tempo... qualquer semelhança com fatos de outras épocas é mera coincidência”. O desfile da São Clemente vai fazer muita gente vestir a carapuça. Bom Carnaval!

*Jornalista

claudio.brito@rdgaucha.com.br


27 de fevereiro de 2017 | N° 18779 
EDITORIAL

O PAÍS DO FORO PRIVILEGIADO

O recrudescimento da crise política a partir da confissão do ex-assessor especial da Presidência da República e amigo pessoal do presidente Temer, o advogado José Yunes, sobre o recebimento de um pacote com dinheiro para a campanha presidencial de 2014, intensificou a ansiedadede políticos e não políticos pelo foro privilegiado, cada vez mais visto como passaporte para a impunidade. Ao afirmar ao Ministério Público que repassou o conteúdo encaminhado por um doleiro a Eliseu Padilha, Yunes poderia estar tentando pegar uma carona no foro privilegiado do ministro-chefe da Casa Civil, que tem direito a julgamento no Supremo Tribunal Federal, caso a investigação resulte em denúncia e em processo.

A Operação Lava-Jato está servindo, também, para escancarar a deformação em que se transformou o “foro especial por prerrogativa de função”, previsto na Constituição Federal para altas autoridades da República e estendido pelas constituições estaduais para uma quantidade de agentes públicos que não encontra paralelo em nenhum outro país do mundo. De acordo com a Associação dos Juízes Federais, 45,3 mil brasileiros contam com o benefício atualmente. 

Em países como Estados Unidos e Inglaterra, até mesmo o presidente da República e o primeiro- ministro são julgados nas mesmas instâncias dos demais cidadãos. Aqui, o direito ao chamado foro privilegiado contempla governantes, parlamentares, juízes e policiais da União, Estados e municípios. Especificando: além do presidente, dos ministros e dos governadores, também prefeitos, promotores, procuradores e secretários estaduais ganharam a prerrogativa de julgamento em tribunais colegiados ou especiais.

É, portanto, urgente uma revisão desse instituto, que sobrecarrega os tribunais superiores, posterga decisões judiciais e, invariavelmente, garante impunidade aos beneficiados. Além da redução do número de pessoas habilitadas ao privilégio, a reforma deve incluir uma mudança sugerida pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o julgamento especial só seja aplicado a crimes cometidos durante o exercício do cargo, pois esse é o espírito da lei. Delitos cometidos fora da função ficariam para ser julgados pelos tribunais comuns.

Do jeito como está, o foro privilegiado representa mais um entrave para o processo de moralização da administração pública no país.


27 de fevereiro de 2017 | N° 18779 
MÁRIO CORSO

O abraço da floresta


Quando pequeno, enlouquecia meu pai pedindo para repetir um passeio. O problema era que eu nunca sabia dizer bem onde fora. Lembrava do trajeto, era uma trilha em um mato, subindo um morro íngreme. Quando chegávamos, abria-se uma vista magnífica e do outro lado descortinava-se um cenário novo, com pedras de várias cores e uma vegetação diferente da habitual.

Esse lugar que alcançávamos era um nicho ecológico atípico, distinto de tudo que era usual em nosso Estado. Na minha cabeça, era próximo de Soledade, tanto por ser uma cidade perto de casa como por ser onde descobrem-se pedras incríveis, portanto um lugar geológico condizente. Tentando fazê-lo recordar, acrescentava que lá comemos, acompanhado de guaraná, o melhor cachorro- quente do mundo. Meu pai quebrava a cabeça e não recordava onde tinha me levado.

Com a idade, me dei conta de que nunca fiz esse passeio, torturei meu pai em vão. De fato, esse cenário era uma colagem de percursos reais, somados com paisagens que vi em enciclopédias, ou em filmes, temperados com minha imaginação. Para um menino pequeno que passeia com seu pai, meia dúzia de macegas é como a Mata Atlântica, um capão é maior do que a Floresta Amazônica. Cem metros mato adentro são um safári com mil perigos, uma trama de significados extraordinários, metade ciência, metade magia. O maior tesouro de um homem são as lembranças das primeiras andanças com seu pai.

Na faculdade, descobri que inventamos memórias. Freud dizia que essas falsas memórias eram recordações encobridoras: verdadeiras pela força do que diziam, falsas porque criadas a posteriori. Porém, elas nos retratam melhor do que a verdade factual. No meu caso, diziam do momento supremo de proximidade com meu pai, antes de os meus irmãos chegarem. Éramos só nós dois, exploradores audazes, enfrentando os desafios da natureza selvagem.

Um dos truques mais simples para saber se uma memória é inventada é se nos vemos na cena. Se nossa memória é como uma foto, ou como um filme onde estamos presentes, trata-se de uma criação. Nas memórias verdadeiras, nós somos a câmera, não o objeto. Nem é preciso dizer que essa minha recordação era uma epopeia cinemascope, com este que vos conta no papel principal.

Sei quando a saudade do meu pai bate mais forte porque agora sonho com esse passeio feérico. O enredo é quase sempre o mesmo: olho outra vez a deslumbrante paisagem ao longe, descubro espécimes de plantas nunca vistas antes pelos biólogos, vejo animais ainda não classificados pelos cientistas. Refaço os passos seguros de quem se sente cuidado e sinto o abraço da floresta como se fosse paterno. A selva segue fascinante, mas não podemos demorar-nos muito, pois mais abaixo aguarda o melhor pastel com guaraná do mundo.

David Coimbra está em férias e retorna no dia 6 de março. Neste período, se revezarão neste espaço Fabrício Carpinejar, Nílson Souza, Cláudia Laitano, Marcos Piangers e Mário Corso.


27 de fevereiro de 2017 | N° 18779 
L.F. VERISSIMO

Janta com o Diabo

Todo fim de ano, o Diabo recebe um pequeno grupo para jantar no que chama de sua anticobertura, um duplex no último subsolo do Inferno, escolhendo entre as almas condenadas as mais interessantes e de melhor papo. Os pratos são sempre grelhados e o vinho é de produção local, marca Diabo, mas o principal é que todos se divertem, falando mal de Deus e todo o mundo. Mas, ultimamente, a questão de quem merece e quem não merece estar no Inferno vem sendo muito discutida nos jantares, e as queixas dos que se acham injustiçados por estarem lá se multiplicam.

O Diabo tenta cortar os lamurientos da sua lista de convidados, mas não pode prescindir da presença de Oscar Wilde, um dos seus comensais favoritos, apesar das suas constantes críticas à comida, à companhia e à ausência de ar-condicionado, e que foi quem primeiro expressou sua revolta. E o Diabo já sabe que em breve estará enfrentando uma verdadeira rebelião de almas pedindo revisão de sentença e perdão retroativo. E que seus jantares nunca mais serão os mesmos.

Tudo começou quando Wilde, fazendo uma cara feia depois de provar o vinho, comentou como estavam se tornando comuns, na Terra, os casamentos entre homossexuais.

– Eu fui preso, execrado e excomungado por ser homossexual – disse Wilde. – Se fosse hoje, em vez de condenado e exilado, eu poderia ser, sei lá, um conselheiro matrimonial. Não faz muito, a mesma igreja anglicana que me mandou para cá ordenou um bispo gay. O que é que eu estou fazendo aqui?

O Diabo tentou mudar de assunto, mas Wilde continuou:

– Me transfira para o Céu, D. Nada pessoal contra você, mas aposto que o vinho lá é melhor. Sem falar no clima.

Não adiantou o Diabo argumentar que nem ele, nem Deus são senhores dos tempos, que mudam, ou da justiça divina, que não tem apelação. Wilde só prometeu epigramas cada vez mais pesados, mas o Diabo se prepara para a gritaria dos indignados do Inferno.

Como os que foram mandados para o Inferno por usura, no tempo em que era pecado. E – como gosta de lembrar o Diabo, com um sorriso malicioso – a Igreja ainda não inventara o Purgatório justamente para acomodar os usurários, pois sem eles não haveria empréstimo a juros, bancos e sistemas financeiros. Hoje a usura não só é o que faz o capitalismo rodar como é o capitalismo financeiro que manda no mundo. 

E, principalmente, não é mais pecado, pois os juros não são mais uma abominação aos olhos do Senhor, e até a Igreja tem bancos. E os condenados por usura no Inferno perguntam se não têm direito à mesma respeitabilidade conquistada pelos banqueiros, que hoje enriquecem em vida sem o risco de suas almas penarem na morte, e à absolvição.

Ou pelo menos a um upgrade para o Purgatório.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Esta empresa passa suas roupas por menos de R$ 1 a peça

Com menos de um ano de vida, Mania de Passar já virou uma rede de franquias com quatro unidades e acabou de receber um aporte de US$ 50 mil

Por Anderson Figo access_time 25 fev 2017, 08h00 chat_bubble_outline more_horiz
ferro de passar

Mania de Passar: Startup recebeu aporte de US$ 50 mil com menos de um ano de vida (ronstik/Thinkstock)

São Paulo – Uma das maiores frustrações de quem deixa a casa dos pais e vai morar sozinho é, sem dúvida, o fim da mordomia de ter sempre aquela roupa passadinha no armário esperando para ser usada. Quem não é fã de serviços domésticos, vai precisar de ajuda.

Foi pensando nesse público que os ex-consultores do Sebrae Claudio Augusto, Thiago Florêncio e Eduardo Koji lançaram, em março de 2016, a Mania de Passar. O negócio deu tão certo que, com quase um ano de vida, já virou uma rede de franquias e acabou de receber um aporte de investidores do Vale do Silício.

Funciona assim: o cliente paga uma taxa mensal, a empresa busca as roupas limpas semanalmente na casa dele e devolve as peças passadas em até 48 horas. Há diversas opções de planos: o mais barato custa 100 reais por mês e dá direito a 80 peças (1,25 real cada uma); já o mais caro, de 280 reais por mês, dá direito a 320 peças (0,875 centavos cada uma).


sócios da Mania de Passar

Sócios da Mania de Passar: da esquerda para direita, Claudio Augusto (CEO), Thiago Florêncio (CMO) e Eduardo Koji (CFO) (Divulgação)
“A ideia do negócio surgiu de uma experiência pessoal minha. Quando fui morar sozinho, me dei conta de que eu poderia lavar a minha própria roupa, mas não sabia como passar”, diz Claudio Augusto, um dos fundadores e CEO da startup.

Em 2012, Augusto fez um empréstimo e criou um espaço de coworking com um dos seus colegas do Sebrae, o qual alugavam para startups. Foi nesse espaço que os futuros sócios começaram a maturar a ideia da Mania de Passar.

“Em 2015, decidimos finalmente tomar coragem, abandonar nossos empregos no Sebrae e nos dedicar 100% ao negócio. Depois de muito planejamento e estudo, decidimos que era a hora de encontrar uma primeira parceira ou parceiro para abrir uma unidade piloto e testar a viabilidade da startup”, diz.

A escolhida foi a Dona Nadir, de Suzano, que antes de botar a mão na massa precisou passar por capacitação para a função. Os sócios a colocaram para fazer cursos do Sindlav (Sindicato Intermunicipal de Lavanderias no Estado de São Paulo).

“Depois disso, em março, partimos para a prática: ela fazia a divulgação boca a boca e nós espalhávamos panfletos, porta-copos e avisos de porta com nossa marca, no estilo ‘não perturbe’. Funcionou: em pouco tempo ela conseguiu cerca de 30 contratos e estava ganhando entre 3,5 mil reais e 4 mil reais por mês”, afirma Augusto.

A experiência foi tão positiva que os sócios decidiram, então, criar um anúncio na internet para saber se outras pessoas se interessariam em ter uma franquia da Mania de Passar. “Tivemos 80 interessados em 10 dias. Foi um sucesso tão grande que a gente teve que tirar o anúncio do ar”, diz o CEO.

Três candidatos foram escolhidos e a Mania de Passar chegou nas quatro unidades que possui atualmente, em bairros das cidades de São Paulo, Suzano e Guarulhos. Os novos franqueados pagam uma taxa de franquia de 7,5 mil reais para que a startup possa capacitá-los para desempenhar o serviço e têm de investir mais 2 mil reais no material necessário para abrir o negócio.

“Neste mês, lançamos a marca oficialmente na Feira do Empreendedor do Sebrae, em São Paulo, e saímos do evento com mais 15 reservas de franqueados para abrir novas unidades em lugares diferentes, que vão desde Jaraguá do Sul (SC) até Maceió (AL)”, revela Augusto. A expectativa dos sócios é montar 100 unidades até 2018 e ter mais de 300 em 2020.

Aporte

De olho na ampliação do negócio, os sócios da Mania de Passar se inscreveram para o 3º Ciclo de Aceleração da Porto Seguro em parceria com a Plug and Play Tech Center, aceleradora que fica no Vale do Silício, nos EUA.

O resultado saiu há poucos dias: a Mania de Passar foi selecionada junto com mais seis startups, entre 1013 inscritas, para receber um aporte direto de 50 mil dólares, destinado ao desenvolvimento do negócio. Mais 100 mil dólares serão investidos na empresa indiretamente, na forma de benefícios.

“Foi uma ótima surpresa. Sem esse apoio financeiro, o nosso faturamento no ano passado já foi de 40 mil. Agora, com o aporte da Porto Seguro, devemos chegar em um faturamento de 2 milhões de reais ao final deste ano”, afirma Augusto.

Investimento inicial: 2 mil reais

Taxa de franquia: 7,5 mil reais

Prazo de retorno: 12 meses
Nova safra de escolas (caríssimas) forma cidadão do século 21

Escolas com currículo flexível, ensino em diferentes idiomas, aulas interativas: a mensalidade sai por até R$ 6,5 mil, mas todas têm fila de espera.


Biblioteca da Concept: a escola planeja abrir uma filial no Vale do Silício (Germano Lüders/Revista EXAME)

São Paulo – Às 7 e meia da manhã, assim que chegam à escola, alunos de 11 anos recebem uma orientação da professora em inglês: o tema do dia será meio ambiente e energia. Leem alguns textos sobre o assunto e, ainda em inglês, fazem uma discussão em grupo. Em seguida, vão para um dos laboratórios da escola e constroem, em conjunto, um aquecedor solar com garrafas de plástico.

A próxima aula é sobre linguagem da computação e os alunos desenvolvem um aplicativo que ajuda a controlar o consumo de energia durante o dia e permite compartilhar dicas de economia nas redes sociais. Em seguida, vão para a aula de matemática, ministrada em espanhol, e fazem cálculos sobre os impactos da economia de energia no consumo de água. Esse é um dia típico numa das novas escolas de educação básica que estão sendo abertas no Brasil.

A escola em questão é a Concept, do grupo SEB, que tem unidades em Salvador e Ribeirão Preto, no interior de São Paulo — mas é possível encontrar escolas com jeitão muito parecido em São Paulo e no Rio de Janeiro. Elas seguem as técnicas de ensino adotadas em algumas das escolas tidas como as mais modernas do mundo, muitas delas localizadas na Finlândia e nos Estados Unidos. Como dá para ver pelo exemplo acima, a rotina dos alunos é bem diferente do dia a dia das instituições tradicionais — e empresários do setor de educação no Brasil estão tentando montar um modelo de negócios em torno disso. Saiba mais: Internet na escola é uma boa alternativa? – Patrocinado 

Diferentemente do que aconteceu no mercado brasileiro de ensino superior na última década, quando a meta das principais empresas era crescer e sair comprando concorrentes (com uma bela ajuda do financiamento estudantil público), a grande onda do momento nos grupos de educação básica é convencer os pais de que estão colocando seus filhos na escola do futuro. O jogo, portanto, não é de escala, mas de qualidade, preço alto e rentabilidade idem.

Nesse modelo, ganha-se dinheiro cobrando caro — as mensalidades variam de 4 000 a 6 500 reais —, e não por meio das sinergias geradas pela escala. “Na educação básica, os alunos podem ficar até 17 anos na escola e há menos desistências do que nas faculdades, porque os pais fazem questão de manter os filhos estudando em boas instituições”, diz Chaim Zaher, fundador do grupo SEB. Ele vendeu sua participação acionária na rede de ensino superior Estácio para a concorrente Kroton no ano passado (o negócio ainda aguarda a análise do Cade) e vai investir ao todo 270 milhões de reais na Concept, hoje sua grande aposta — já foram investidos 170 milhões.

O plano é abrir, em 2018, unidades em São Paulo (onde já comprou e está reformando o imóvel onde ficará a escola), no Rio de Janeiro e até em Palo Alto, no Vale do Silício. “Queremos que nossos alunos tenham essa experiência internacional, que deve se tornar cada vez mais importante para definir a vida profissional”, diz Thamila Zaher, diretora executiva do SEB e uma das filhas de Chaim. Uma de suas concorrentes — que segue um modelo de ensino bastante parecido — é a Eleva, que fica no Rio de Janeiro e pertence ao grupo Eleva Educação, cujo sócio majoritário é o fundo Gera Venture Capital, controlado pelo empresário Jorge Paulo Lemann. A escola foi aberta em 2017, tem 360 alunos e a meta é dobrar de tamanho até o próximo ano.

O surgimento de mais opções para filhos de pais dispostos a apostar em modelos educacionais novos está acirrando a competição nesse nicho. Novas escolas estão sendo inauguradas e quem já estava nesse mercado decidiu investir para crescer. É o caso da Lumiar, do empresário Ricardo Semler. Fundada em 2002, a escola foi eleita uma das mais inovadoras do mundo pela Unesco em 2007 e passou mais de uma década com três unidades, uma na cidade de São Paulo e duas em Santo Antônio do Pinhal, no interior paulista.

Em 2016, Daniel Castanho, presidente da rede de ensino Anima, tornou-se sócio da Lumiar, e ele e Semler colocaram em andamento um plano de expansão. Em um ano, foram inauguradas duas novas unidades (em Porto Alegre e mais uma em Santo Antônio do Pinhal). “Estamos avaliando se é melhor continuar abrindo escolas ou criar um sistema de ensino e vender para as instituições que querem seguir nosso modelo”, diz Castanho.

Outra pioneira é a Beacon, de São Paulo. Começou em 2010 com 16 alunos no bairro Alto de Pinheiros, hoje tem quatro unidades com  620 alunos e está fazendo um investimento de 30 milhões de reais — cerca de 60% são financiados pelo BNDES — para construir um campus com capacidade para 1 200 alunos. Hoje, a Beacon só atende crianças até 12 anos. O plano é abrir uma nova série por ano para atender até o ensino médio. “Existe uma grande demanda dos pais por um ensino diferente e de alto nível. Mas a contratação de professores qualificados que falem dois ou três idiomas é um de nossos maiores de-safios”, diz Maria Eduarda Sawaya, uma das sócias da Beacon.

Novas profissões

Um dos grandes apelos dessas escolas é formar estudantes para enfrentar os desafios de um mercado de trabalho em mutação — numa era em que, com todo o saber humano disponível na internet, decorar a estrutura dos hidrocarbonetos aromáticos talvez não seja tão importante assim. No vídeo de apresentação da Concept aos pais interessados em matricular seus filhos, há um trecho que diz que metade das profissões que estarão em voga daqui a 50 anos ainda não existe.

Só Deus sabe se tantas profissões vão mesmo desaparecer — mas claro que isso mexe com a ansiedade paterna. Essas escolas se propõem a ensinar ao aluno as habilidades para aprender sozinho. Aprender equações matemáticas, gramática e eventos históricos é só parte do que os estudantes fazem. Em vez de esperar que todo o conteúdo seja apresentado pelo professor, numa aula puramente expositiva, eles vão entender parte das disciplinas na prática, em laboratórios equipados com impressoras 3D e equipamentos de corte a laser, discussões em grupo ou mesmo dando aulas a estudantes mais novos.

A ideia, quase um mantra nas apresentações dessas escolas, é que fazer perguntas é tão importante quanto saber respondê-las. “Nossas aulas têm duração variável, dependendo do tema. O objetivo é que o aluno tenha sempre um momento para experimentar e desenvolver o conteúdo, e nesse momento as ideias devem partir do grupo”, diz Vera Giusti, outra sócia da Beacon. Ela cita como exemplo a construção de uma cisterna por um grupo de alunos do 5o ano: o projeto surgiu durante uma discussão sobre escassez de água, e os alunos se propuseram a fazer uma para a escola.

Além disso, a divisão entre as disciplinas não é tão rígida como nas instituições tradicionais: um tema de história pode ser explorado também nas aulas de português e matemática, o que ajuda a integrar o conteúdo à realidade dos estudantes. “O ensino por meio de projetos gera mais engajamento dos alunos”, diz Maria Helena Godoy, especialista em educação da consultoria de gestão escolar Instituto Aquila.

O ensino de diferentes idiomas e a possibilidade de estudar fora do país são outra aposta dessas escolas. Elas são diferentes das instituições estrangeiras tradicionais, que existem há décadas no Brasil e privilegiam um único idioma — como a Graded, em São Paulo, e as escolas britânicas. Nas novas escolas, as disciplinas são ministradas de forma alternada em inglês, português e, em alguns casos, também em espanhol. O objetivo é que os alunos sejam fluentes nos três idiomas e continuem aprendendo sobre cultura brasileira.

A escola americana Avenues, que fica em Nova York, pretende abrir unidades em São Paulo em 2018 e em Londres e Pequim no futuro para permitir que os alunos possam mudar de uma filial para a outra. “Os alunos poderão estudar em diferentes lugares e aprender vários idiomas e culturas, formando-se um cidadão global”, diz Alan Greenberg, um dos fundadores da Avenues. Por fim, o currículo dessas escolas é flexível. Os alunos ficam de 8 a 10 horas na escola e têm de escolher matérias optativas, como robótica e introdução a finanças. “Meio período não é suficiente para dar uma boa formação. Os brasileiros ficam poucas horas na escola, na média, e isso se reflete em notas ruins na comparação mundial”, diz Wilson Risolia, presidente da consultoria Falconi Educação.

A ideia central dessas escolas não é nova. Fala-se há décadas na importância de desenvolver a capacidade de aprender a aprender. Pesquisas feitas nos anos 70 pelo americano James Heck-man, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, indicam que ter curiosidade, saber se planejar e trabalhar em grupo para resolver problemas é tão ou mais importante para o futuro dos estudantes do que aprender as disciplinas obrigatórias.

Somente nos últimos anos, porém, passaram a surgir escolas que adotam esses princípios na prática. As principais ficam na Finlândia, país que está há anos nas primeiras posições dos rankings mundiais de qualidade de ensino e aprendizado. É verdade que algumas escolas tradicionais também já começaram a mudar para seguir, pelo menos em parte, esse novo modelo de ensino. Há menos aulas expositivas do que no passado, mais laboratórios e a opção de permanecer na escola em período integral e cursar disciplinas não obrigatórias.

Mas as mudanças são pontuais. “Esse é um modelo ainda novo, nem todos os pais querem esse tipo de mudança”, diz Guilherme Mélega, executivo da empresa de educação Somos, dona dos colégios Anglo 21 e PH. “Além disso, é difícil combinar um ensino mais inovador com a exigência de conteúdo para ter boas notas no Enem e no vestibular. Notamos que muitos alunos querem ficar no Brasil e, por isso, essas provas são importantes”, diz Mauro Salles Aguiar, presidente do Colégio Bandeirantes.  O ranking de pontuação no Enem ainda é um dos principais chamarizes das escolas brasileiras. Saiba mais: Como a escola integral ajuda a passar no vestibular? – Patrocinado 

Por enquanto, há mais demanda que oferta por esse tipo de ensino — há fila de espera para todas as escolas desta reportagem. O desafio, porém, é expandir o negócio sem perder qualidade. Atualmente, a margem de lucro das escolas de educação básica fica em torno de 20% — nas faculdades, está em 30% em razão dos ganhos de escala. Hoje, praticamente todas as escolas que apostam nesse novo conceito estão investindo em expansão, o que atrapalha a rentabilidade. O lucro, esperam os empresários do setor, virá — ou a escola do futuro não terá futuro.

sábado, 25 de fevereiro de 2017



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
LYA LUFT

Educação e utopia

Já escrevi, e repito, que sou de uma família de professores: meu pai, o pai dos filhos, agora um filho, eu mesma ex-professora de linguística, até descobrir que aquela não era minha vocação. Me dava alegria o contato com os alunos, me fazia sofrer toda sorte de regras, por mais justas que fossem. 

O tema educação me é muito próximo, muito querido, é mesmo fundamental, e começa com aquela educação em casa, onde as crianças aprendem limites e possibilidades, voos e raízes, compostura, gentileza, firmeza, discernimento – mesmo os menorzinhos. Aprendem por osmose (sem diálogos solenes) questões de respeito e afeto. Quando forem à escola, não serão os pequenos selvagens que os pais entregam para que os mestres os transformem em civilizados.

O professor deveria ser, na pirâmide geral, um dos funcionários mais bem pagos, porque dele dependem futuro, postura, preparo, eficiência e humanidade de jovens e crianças – e, não é metáfora, do país. O mestre deveria ter excelentes condições de trabalho, para continuar a se preparar, para acompanhar os alunos, dialogar, escutar, reconhecer como pessoas, não importa se têm quatro ou dezoito anos. (E para que nos intervalos professoras não tenham de vender docinhos ou lingerie às colegas, e os professores fora do horário na escola não tenham de fazer bicos a fim de dar de comer aos filhos.)

Acredito, de maneira quase feroz, na necessidade de despertar, não só entre os responsáveis mas no povo em geral, a noção clara de que na educação devemos buscar excelência, o que não tem a ver com elitismo – todos temos direito ao melhor, que não significa dinheiro. Que a escola possa dar o melhor ambiente (basta que seja decente, sem ser um palácio), com os melhores professores, para que os alunos possam também descobrir, e cultivar, o melhor de si. 

Não é justo achar genial que se deve aprender brincando – não falo em criancinhas de maternal –, reproduzindo o hábito de muitas famílias em que não se pode dizer não ou dar um leve castigo (uma hora sem tablet já assusta) porque a criança, o adolescente, ficaria traumatizado. E assim os tratamos como pequenos ou grandes imbecis. Fazemos muita cerimônia com esse assunto: numa palestra, um professor me perguntou que motivo dar aos alunos para que estudassem. Minha resposta foi totalmente espontânea: “Para que não fiquem burros”. Risada geral, aplausos, e até eu fiquei refletindo nisso: deixar de ser ignorante é, mais do que um dever, um direito de todos.

E não me digam que os governos estão falidos. Talvez estejam falidos o ânimo e a vontade geral, começando pelas autoridades, contagiando famílias, os próprios jovens e – por que não? – as crianças. 

Nada justifica que, mesmo empobrecidos e assustados, iludidos por cada vez mais novos projetos e comissões palavrosos e ineficazes, não se coloque a educação em primeiro lugar em qualquer orçamento. Gente preparada vai colaborar nas condições de vida, saúde, economia, na melhoria da existência de indivíduos, no progresso geral, e na administração decente da tão maltratada coisa pública.

De modo que, se consertarmos um pouco que seja nossas nada brilhantes cabeças, talvez a educação deixe de ser uma utopia.


25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Este texto foi publicado em 25 de abril de 2010

Terapia do joelhaço

Extra, extra. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo. Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existem duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”. Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar:

“Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer? Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce.

Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara.”

Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta. Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo. O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
CARPINEJAR

Incompetência telefônica

Homem prefere telefonar aos amigos sozinho. Absolutamente solitário. Como se estivesse jogando videogame. Se a namorada ou a esposa estiver presente, a conversa não irá fluir.

Homem não consegue conversar ao telefone e atender qualquer pergunta de sua mulher ao mesmo tempo.Ele se perde inteiro, gagueja, tem brancos na memória. Se a mulher começa a fazer um gesto, ele salta o tom de voz, escorrega no silêncio, espaça a voz, sacrifica o raciocínio, esguicha vogais para todos os lados, como uma mangueira ligada e se contorcendo no chão. Esquece a sua mensagem, onde está, quem é.

É apenas ela coçar a cabeça que ele se precipita em supor incêndios, enchentes, calamidades pela casa. Homem sempre acha que está cometendo algo errado – é sua esposa fazer uma menção com as sobrancelhas ou parar em sua frente e ele cai em pânico. Vacila. Apaga. Não toca a ligação para frente.

Parece que foi desmascarado, que falou uma bobagem e ela ouviu. E agora terá que enfrentar uma discussão de relacionamento. Homem não consegue manter duas conversas ao mesmo tempo. É obrigado a desligar. É obrigado a saber primeiro o que ela deseja.

Ele fica encabulado com alguém mandando nele. O problema do homem não está em ser mandado, mas que os outros descubram que ele é mandado.

A mulher sim, a mulher pode ser interrompida enquanto conversa ao telefone e não terminará nem um pouco constrangida. Nasceu com o telefone na orelha. O telefone para a mulher é um ponto. O telefone para a mulher é um brinco. Não se sentirá ofendida. Pode responder comicamente à mímica do marido. Pode rir de sua presença incômoda. Ou colocar o fone para o lado e fulminar, grosseira e direta: “O que foi?”.

Já o homem se despede com a pressão e explica ao amigo que depois retorna.

Ao parar tudo e ver o que a sua mulher quer, descobrirá sempre que não é nenhuma urgência. Não foi uma correção de postura. Não foi um flagrante. Não foi uma censura. Nunca é nada. É algo bobo, corriqueiro, dispensável, tipo: “Lembre do óleo de girassol quando for ao mercado”.




25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
CLÁUDIA LAITANO

A verdadeira maionese

Uma coisa nós já aprendemos nesses primeiros 15 anos de redes sociais: não existe nenhum assunto tão banal, ou esdrúxulo, que não possa ser transformado em pretexto para um embate de proporções épicas entre visões de mundo irreconciliáveis.

A maionese, por exemplo. Não “a verdadeira maionese” – aquela que Kraunus Sang e o Maestro Pletskaya tantas vezes celebraram em serões na Praça da Matriz –, mas uma outra, menos conhecida, mas, para alguns, igualmente merecedora do direito de usar seu nome.

O duelo começou alguns dias atrás, quando alguém perguntou no Twitter para a apresentadora Rita Lobo por que ela não ensinava uma receita de maionese preparada com óleo de coco e iogurte. A resposta veio sem adoçantes: “1) Porque não é maionese. 2) Trate seu distúrbio alimentar”.

Adepta de uma comida mais parecida com algo que não deixaria sua avó ofendida ou assustada, Rita Lobo é colega de emissora de Bela Gil, famosa pelas experiências pouco ortodoxas com ingredientes e técnicas de preparo – o churrasco de melancia e a feijoada com tofu entre elas.

Rapidamente, o diálogo no Twitter desandou para um embate entre rita-lobistas e bela-gilistas, para deleite de todos aqueles que, não sabendo a diferença entre um morango e um rabanete, salivavam diante da oportunidade de se alistar no bate-boca.

A polêmica da maionese talvez reflita algumas idiossincrasias da nossa época. Para começar, a obsessão quase religiosa com determinados tipos de dieta e a disposição para converter novos fiéis para a causa alimentar de sua preferência – usando, é claro, o palco em que todos os debates públicos, os graves e os aleatórios, disputam a fluida atenção da audiência.

Faça o teste: pegue qualquer assunto, digamos, a verdadeira maionese, coloque sobre a mesa (as redes sociais) e atraia pessoas de diferentes origens, temperamentos e interesses para a conversa. Assista como, lentamente, o assunto vai assumindo sentidos diversos, cada vez mais distantes do tema inicial do debate. Deixe no forno por alguns minutos, e o ingrediente original pouco a pouco se dissolve, assumindo o aspecto de uma escolha moral diante da qual o mais distraído observador é convocado a se posicionar.

Já não basta ser livre para escolher, entre os 457 programas de culinária exibidos pela televisão brasileira, aquele com o qual você se identifica e que, de alguma forma, expressa sua personalidade, seus gostos e seu estilo de vida (despojado, trash, natureba, sofisticado...). É preciso convencer os outros de que a sua escolha é a melhor e que qualquer outra não apenas tem potencial para destruir o planeta e a raça humana como será percebida como uma espécie de ofensa pessoal.

Talvez a enigmática mensagem que Kraunus e Pletskaya estavam tentando nos transmitir durante todos aqueles verões em que escapavam da Sbórnia para ocupar a Praça da Matriz fosse esta: uma vez descoberta “a verdadeira maionese”, o próprio sentido da vida nos será revelado de forma clara e definitiva. Ou não.

David Coimbra está em férias e retorna no dia 6 de março. Neste período, se revezarão neste espaço Fabrício Carpinejar, Nílson Souza, Cláudia Laitano, Marcos Piangers e Mário Corso.



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 PALAVRA DE MÉDICO
J. J. Camargo é cirurgião torácico

ESTORVO


Desde a primeira década do século 20, quando começou-se a projetar a expectativa de vida da população, percebeu-se que, a cada cinco anos, este índice vai aumentando numa curva de crescimento cuja inclinação pode variar de países e continentes, mas é sempre ascendente.

Isso garantido, com a perspectiva de um número crescente de centenários brigando por espaço no planeta superpovoado, parece mais do que adequado começarmos o debate de como preparar o terreno para que as futuras gerações de longevos não se transformem em estorvos para a sociedade e, antes disso e mais triste, para as suas próprias famílias.

Com limitações inevitáveis e dependências previsíveis, essas levas de anciãos com graus diversos de saúde e lucidez precisarão ser alocadas em funções que lhes mantenham ocupadas e livres da sensação de inutilidade, esta que é, de longe, a condição mais degradante a que se possa expor uma criatura que um dia, de pele lisa e raciocínio rápido, sentiu-se muito importante na vida.

Na contramão das conquistas médicas que asseguram essa longevidade festejada, pouco ou quase nada tem sido anunciado como avanço na busca da preservação cerebral. Os interesses imediatistas da sociedade moderna ainda agravam a perspectiva futura na medida em que, conforme publicação recente, se investe cinco vezes mais em pesquisas de terapias de embelezamento e de deficiências eréteis do que em prevenção da doença de Alzheimer.

A perspectiva de tempo ganho de vida a ser vivida sem qualidade é, sem dúvida, a maior ameaça aos milhares de candidatos a uma auspiciosa prorrogação de prazo que era impensável há poucas décadas. Dar sentido a esse ganho é assegurar que todas as pessoas possam envelhecer sem a decadência biológica precoce, que é uma linha divisória entre gozar a vida e desejar a morte.

Até agora, o que mais fazemos é segregar nossos doces velhinhos, agrupando-os em lares geriátricos, alguns extremamente qualificados e zelosos, oferecendo atendimento de enfermagem diário e médico quando necessário, além da companhia de contemporâneos solidários em limitações, fantasias, memórias, rabugices, desesperança, saudade e solidão.

A Madre Tereza contou que, ao visitar um desses asilos luxuosos, ficou impressionada porque, apesar de alojados numa sala de estar, equipada com TV e recursos de multimídia, todos mantinham um olhar meio triste, focado na porta de entrada. Questionada, a diretora meio constrangida, admitiu: “A maioria deles está aqui há muito tempo, e ninguém mais vem visitá-los, mas este olho na porta parece ser o jeito que eles encontraram de dizer que nunca vão desistir de esperar que seus amados reapareçam”.



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
PIANGERS

Primeiro dia de aula

Anita dormiu no sofá, então no caminho da escola percebi algo engraçado: seu rosto estava marcado com aquelas listras do estofado. Quando vamos pra escola caminhando, ela sempre está feliz, fazendo com as mãos dancinhas e coreografias. Assim que falei que ela estava marcada no rosto, ela me olhou preocupada, jogou todo o cabelo na cara, passou a caminhar corcunda. Relaxa, não precisa ter vergonha, já vai sair, eu disse, percebendo pela primeira vez suas inseguranças adolescentes. Ela continuou cabisbaixa. O que eu falei pra ela, então, foi mais o menos o seguinte. Vou abrir um novo parágrafo.

A gente demora décadas pra entender quem a gente é de verdade e, quanto mais relaxado a gente for nesse processo, mais fácil fica se encontrar. Não importa o quanto você é bonita ou popular, se não se sentir bonita e popular pra você mesma será infeliz. Cansei de ver pessoas perfeitamente arrumadas, impecavelmente lindas e extremamente inseguras. Cansei de ver pessoas esquisitas, de quem todo mundo gosta, porque estão bem resolvidas consigo mesmas. O que ninguém gosta é de gente que tem vergonha de ser o que é: e quando a gente é adolescente a gente quer ser tudo, menos a gente mesmo.

Se alguém te perseguir na escola porque você é diferente, só existe uma solução: ser abusadamente feliz. Não há melhor vingança do que esta. Ser feliz. Vale pra todo tipo de gente: pessoas que levaram um pé na bunda, pessoas que foram demitidas, pessoas que não foram aceitas em um grupo social. Seja abusadamente feliz. Tenha uma vida brilhante. Essa é a única forma de se vingar de qualquer pessoa: ser tão feliz que ela vai se contorcer de inveja. Porque você não está nem aí pra opinião dela, porque você está mais interessada em quem você é pra você mesma e para as pessoas que genuinamente gostam de você.

Timidamente ela voltou a cantarolar uma música, fez mais umas dancinhas e entrou portão adentro saltitando. Me lembrou um menino ruivo, tímido e sardento, cheio de espinha na cara, inseguro e com medo do que ia encontrar na escola. Entrando na escola aos 11 anos de idade, 25 anos atrás. Querendo que alguém tivesse dito a ele tudo que eu disse pra minha filha. E, ao mesmo tempo, sem saber se adiantaria pra alguma coisa.

25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
EDITORIAL

SOLUÇÕES PARA A CRISE CARCERÁRIA

O Conselho Nacional de Justiça apresentou, na última sexta-feira, o relatório resultante de inspeções do Judiciário em algumas das principais penitenciárias do país, chegando à conclusão de que, de cada três presos no Brasil, um está em situação provisória aguardando julgamento. Em números efetivos, segundo o levantamento, o país tem atualmente 654.372 pessoas presas, das quais 433.318 já foram condenadas (66,2%), enquanto 221.054 (33,7%) estão em situação provisória. 

Por iniciativa da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, juízes de todo o país estão sendo convocados para um esforço concentrado que ajude a reduzir esta população carcerária, aliviando as tensões responsáveis por recentes motins e massacres no interior das prisões.

A aceleração de processos de presos provisórios certamente contribuirá para atenuar o problema, mas está muito longe de ser a solução para a superlotação e para a degradação do sistema penitenciário brasileiro, que não recupera ninguém e abriga verdadeiras escolas do crime, principalmente devido ao domínio das facções originadas pelo tráfico de drogas. 

Pois outra providência proposta por especialistas para reduzir a quantidade de presos é exatamente uma alteração na chamada Lei das Drogas, que possibilite distinção efetiva entre usuários e traficantes. O ex-ministro da Justiça e agora integrante do STF Alexandre de Moraes disse em sua sabatina que a legislação precisa diferenciar “de forma objetiva” o consumidor do traficante. O maior percentual de presos provisórios nas cadeias do país (29%) é de acusados de tráfico de drogas.

Ainda assim, é uma ilusão imaginar que basta liberar usuários que cometem crimes menores e sentenciar apenas os traficantes para que o problema seja equacionado. Mesmo sem aqueles, os presídios continuarão sendo insuficientes e inadequados se novas instalações não forem construídas. Além disso, não temos clínicas e casas especializadas na recuperação de drogados, para que não voltem a delinquir por conta do vício. Nem o Sistema Único de Saúde está capacitado a oferecer atendimento satisfatório para este contingente de brasileiros necessitados.

Destinar presídios apenas para os criminosos mais perigosos é um caminho que merece ser considerado, mas tão importante quanto isso, talvez até mais importante, seria atacar as causas geradoras da criminalidade – com educação e oferta de oportunidades –, para que mais brasileiros se tornem cidadãos em vez de virarem delinquentes.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017



24 de fevereiro de 2017 | N° 18777
POLÍTICA

Serraglio promete manter “distância” da Lava-Jato


NOVO MINISTRO DA JUSTIÇA, que é deputado do PMDB, foi anunciado pelo Palácio do Planalto
Um dia após a nomeação do ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Michel Temer definiu seu substituto. Assumirá o cargo o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). O nome ganhou força por ter apoio de parte da bancada do PMDB da Câmara e do PSDB. Relator da CPI dos Correios, que deu origem ao processo do mensalão, Serraglio é próximo ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Primeira opção de Temer para suceder Moraes e dar um caráter técnico à nomeação, o ministro aposentado do STF Carlos Velloso recusou o convite na semana passada. A desistência recolocou Serraglio no páreo. A escolha tenta sustar as críticas recebidas pelo governo da bancada do PMDB, que cobra mais espaço na Esplanada. 

A pressão foi decisiva para sacramentar a nomeação. Além da chancela dos colegas de partido, pesou a favor de Serraglio, nascido em Erechim mas com carreira desenvolvida no Paraná, sua formação jurídica. Professor universitário, é mestre em Direito pela PUC-SP e tem especialização em processo civil pela Universidade Paranaense.

Com experiência limitada no Executivo, o peemedebista assume o cargo com o desafio de controlar a crise da segurança pública, que teve chacinas em presídios e protestos de policiais militares pelo país. Serraglio terá de tirar do papel o controverso Plano Nacional de Segurança, lançado por Moraes. Outro desafio trata de conter a insatisfação da Polícia Federal, que aponta movimentos para barrar a Operação Lava-Jato.

PROXIMIDADE COM CUNHA É RESSALTADA POR OPOSITORES

Na Câmara, o novo ministro não estava entre os nomes de maior influência política dentro do PMDB. Seu momento de maior destaque ocorreu entre 2005 e 2006, quando foi relator da CPI dos Correios.

– Ele é uma pessoa muito educada, às vezes não se tem ideia do que é capaz. Mas foi decisivo para a CPI dos Correios, que teve o resultado que teve – afirmou o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, que fez campanha por Serraglio para a pasta.

Terra avalia que o novo colega terá pulso para dar seguimento à Lava-Jato, apesar de a cúpula do PMDB estar implicada nas investigações – ontem, dois doleiros ligados ao partido foram alvo de operação da Polícia Federal (leia na página 15). Serraglio disse à Folhapress ter acertado com Temer um compromisso com relação à Lava-Jato:

– A ordem é manter distância porque a gente sabe que qualquer coisa que faça, você se contamina, então é para deixar para lá.

Um dos investigados na operação é Cunha, antigo aliado de Serraglio. Em 2016, o deputado teve o apoio do então presidente da Câmara para presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), por onde passaria o processo que levou à cassação do parlamentar fluminense – o mais longo caso da história, que se arrastou por 335 dias. Acusado por parlamentares da oposição de dever favores a Cunha, Serraglio reagiu:

– Essa história de que devo favor a Cunha é folclore.

A proximidade com o ex-presidente da Câmara é lembrada por desafetos do novo ministro. Colega de partido e eleito pelo mesmo Estado, o senador Roberto Requião (PMDB-PR) criticou a opção do governo. Para ele, o escolhido por Temer fará um trabalho no mesmo nível do que é realizado por Ricardo Barros (PP-PR) à frente da Saúde.

– É o fim do mundo, aliado de Eduardo Cunha no Ministério da Justiça. Está à altura do conjunto da obra do governo Temer – provocou Requião.

Em novembro de 2016, já com Temer no Planalto e Cunha cassado e preso pela Lava- Jato, Serraglio foi um dos deputados que votou a favor do projeto que trata do abuso de autoridade juízes e promotores, na sessão que desfigurou a proposta das medidas de combate à corrupção encabeçadas pelo Ministério Público Federal.

Ainda na Câmara, o peemedebista relatou a PEC 215, que dá ao Congresso a palavra final sobre as demarcações de terras indígenas, atualmente definidas pelo governo federal, sendo que os processos passam justamente pelo Ministério da Justiça.

A TRAJETÓRIA

-Osmar Serraglio nasceu em Erechim, em 23 de maio de 1948. Em Tapera, estudou no seminário Sagrado Coração de Jesus. Aos 15 anos, com os pais e quatro irmãos e uma irmã, mudou-se para o Paraná.
-Advogado, filiou-se ao MDB em 1978 e seguiu no partido após a mudança do nome para PMDB. Foi assessor jurídico de prefeituras no noroeste do Paraná, até ser eleito vice-prefeito de Umuarama em 1992. Ficou no cargo até 1996. Dois anos depois, foi eleito para o primeiro dos cinco mandatos consecutivos de deputado federal.
-Entre 2005 e 2006, foi relator da CPI dos Correios, criada a partir de denúncias de corrupção na estatal, mas que acabou investigando a existência do pagamento de um mensalão para os parlamentares, em troca da aprovação de medidas de interesse do governo.
-No ano passado, comandou a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Aliado do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, Serraglio teve como missão pautar recursos que poderiam anular o processo aberto contra amigo no Conselho de Ética. Quando Cunha foi preso, em outubro do ano passado, reagiu dizendo:
– É a queda da República!
Serraglio também afirmou que a cassação seria “punição muito severa” para Cunha e dizia duvidar que o correligionário perderia o mandato por conta dos apoios que tinha. Disse, ainda, que o ex-presidente da Casa teria conquistado a simpatia de parlamentares por conta da celeridade com que fez andar o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
-Serraglio votou a favor da punição de juízes e de procuradores por abuso de autoridade, dentro do pacote anticorrupção aprovado pela Câmara. Logo depois, divulgou uma nota afirmando que a responsabilização de juízes e promotores nada tem a ver com a Lava-Jato e que o Brasil está sendo passado a limpo. No texto, entretanto, faz a ressalva de que “nem todos os juízes e procuradores são Sergio Moro ou Deltan Dallagnol”.
-No início do mês, foi candidato avulso à primeira vice-presidência da Câmara, mas acabou derrotado.