sábado, 11 de junho de 2011



12 de junho de 2011 | N° 16727
VERISSIMO


Ernest e Scott

O último filme do Woody Allen, em que o protagonista, por uma mágica nunca explicada, se vê transportado de um presente que o desagrada para a Paris dos anos 20 e 30, na qual vivem alguns dos seus heróis intelectuais, reacendeu o interesse naquela época. Principalmente nas duas figuras que caracterizaram dois tipos de expatriados americanos, assim como representaram duas maneiras de escrever. Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald.

Hemingway foi da primeira leva de jovens americanos que chegaram à Europa atraídos pela guerra, no caso a Primeira Mundial, atrás de engajamento e aventura. John dos Passos e E. E. Cummings foram outros. Com apenas 19 anos, Hemingway foi ferido em ação como motorista de ambulâncias na Itália, apaixonou-se pela sua enfermeira e casou-se com ela e 10 anos depois usou a experiência para escrever seu primeiro romance de sucesso, Adeus às Armas.

Fitzgerald chegou a se formar como oficial e estava a ponto de ser mandado para a França quando veio o Armistício e o fim da guerra. Escreveu sobre o espirito da época e sobre a geração da Grande Guerra em seu primeiro romance Deste Lado do Paraíso, mas não teve a experiência direta de combate – nem os ferimentos – que forjaram o estilo e a personalidade de Hemingway. Este nunca perdeu a oportunidade de lembrá-lo desta diferença.

Hemingway chegou a Paris em junho de 1918. A guerra se aproximava do fim. Uma ofensiva desesperada trouxera as forças alemãs para perto de Paris e a cidade sofria bombardeios dos grandes canhões inimigos, os “Big Berthas”. Uma derrota dos aliados era uma possibilidade.

Hemingway deixava seu hotel desaquecido perto da Madeleine e pegava táxis para ir ver os estragos do bombardeio, rodando por uma cidade quase vazia. Mas nos seus aposentos forrados de seda no Boulevard Haussmann, Marcel Proust continuava a escrever suas lembranças de um mundo que se esfarelava fora das suas janelas. E os Ballets Russes continuavam a dar espetáculo sob o bombardeio.

Fitzgerald chegou à Europa com a mulher Zelda no começo dos anos 20 para lançar Deste Lado do Paraíso, que já lhe dera sucesso e dinheiro nos Estados Unidos mas foi mal recebido em Londres. E Fitzgerald odiou Paris. Depois voltou à cidade, revisou sua opinião e se integrou à colônia americana, embora não tivesse a mesma história de privações de Hemingway e dos outros. Nunca viu um bombardeio e nunca faltou água quente nos seus aposentos. Acabou escrevendo seus dois melhores livros, O Grande Gatsby e Suave é a Noite, na França.

Hemingway e Fitzgerald frequentavam círculos às vezes concêntricos mas diferentes, um mais apto a conviver com o Ezra Pound e o outro com a Coco Chanel. Mas se encontraram e ficaram amigos, apesar de Hemingway frequentemente expressar duvidas sobre a masculinidade de Fitzgerald e achar seu estilo literário preciosista. Hemingway conseguiu convencer Fitzgerald a enfrentá-lo no boxe, para humilhá-lo (o boxe era uma atividade curiosamente comum na colônia. Até a Gertrude Stein boxeava, quando encontrava um adversário à sua altura).

O filme de Woody Allen faz uma caricatura de Hemingway, sempre disposto a brigar com alguém para provar que mesmo sendo escritor é macho, e dá mais atenção à maluca da Zelda do que a Fitzgerald, mas retrata os dois corretamente como as figuras definitivas da época e da sua literatura.

Fitzgerald, o aristocrata sem a experiência de vida que supriu a obra de Hemingway e de outros contemporâneos acabou sendo desagravado pelo tempo. Hoje o texto seco e taquigráfico de Hemingway, diluído em sentimentalismo, parece mais um maneirismo do que um estilo, enquanto se relê a prosa suculenta de Fitzgerald com o mesmo gosto. No boxe, deu o Hemingway. Na literatura, ganhou o Fitzgerald.

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