quarta-feira, 6 de abril de 2011



06 de abril de 2011 | N° 16662
JOSÉ PEDRO GOULART


O grito

A coisa mais estranha que me aconteceu não foi ter ficado preso, aos 13 anos, no topo de um portão de ferro de uns dois metros de altura. Quando digo preso, digo – cuidado corações sensíveis – precisamente isso: uma ponta aguda atravessando completamente o meu pé esquerdo sem respeitar a sola do tênis; uma outra, enfiada parcialmente no meu pé direito, e as mãos igualmente furadas na tentativa de me equilibrar em cima das grades cheias de espetos.

Eu só tentava recuperar, no pátio da casa fechada ao lado, o escorredor de arroz da minha avó que o vento levou.

De maneira que eu estava ali, experimentando uma crucificação sem cruz, com cravos pontiagudos a me penetrar os pés e as mãos. O que me salvou é que eu era mirradinho – do contrário, é certo que desabaria e aquele seria o meu cadafalso. Segurei na calha de lata que havia rente à parede, tomei fôlego e, como não havia ninguém por perto, percebi que gritar naquela hora seria tão inútil quanto nos dias de hoje tentar humanizar o Bolsonaro.

Em cima daquele portão, se eu não fosse uma criança, talvez pudesse ter refletido que há sofrimentos e sofrimentos; que ninguém, por mais que entenda, pode sentir a dor do outro. Aquela, misturava humilhação, impotência, dor física e em especial o medo. Em todo homem se esconde um cachorro sarnento, amedrontado, solitário.

Mas não pensei nisso tudo, apenas respirei bem fundo e tirei o pé esquerdo da lança de ferro. Ouvi o osso ranger. Em seguida o outro pé, e então pulei, tendo que usar os dois pés furados como base para meu corpo ao aterrissar no solo. Não gritei, a culpa e a vergonha inibem certos sentimentos.

Depois é que aconteceu a coisa mais estranha. Na segunda de uma série de três injeções antitetânicas, pedi ao enfermeiro da farmácia que fosse com calma, doía muito. Na metade da aplicação, porém, ouviu-se um grito histérico de uma mulher; o enfermeiro se assustou e cravou a agulha no meu braço. Por que ela gritou?

Defronte à farmácia passou uma ambulância cuja porta traseira abriu num solavanco na esquina, ejetando a maca lá de dentro com o doente e tudo. Justo na minha hora. A agulha provocou a dor de mil picadas. Mas, entre gritos da rua e a patética sirene da ambulância que insistia em tocar, meu lamento foi em vão.

Talvez pudesse ver essa história como uma metáfora. O portão simbolizando a adolescência, suas pontas afiadas, que precisam ser ultrapassadas. Atrás, a infância terminando, e com ela a licença para chorar sempre que doer. Na frente, os tesouros da vida adulta, como o escorredor de arroz da minha vó.

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