quarta-feira, 27 de abril de 2011



27 de abril de 2011 | N° 16683
DIANA CORSO


Fluxo da impessoalidade

Motoristas sobrevoam uma paisagem, de preferência sem dispersão, atentos a rotas, contextos, coordenadas. Lombas e acidentes do terreno só exigem uma rápida mudança de marcha.

Nada precisam saber de cheiros, gosmas na calçada, vegetação e sombras, do zoológico de animais domésticos, dos adolescentes coreografando sua música solitária, de velhos ocupados e crianças contando algo a um adulto que se reclina, de pessoas belas, esdrúxulas, vivazes, sorumbáticas.

Com cada rosto que se cruza há uma negociação de olhares, uma história imaginada, medo ou confiança. Só os loucos desrespeitam a separação entre carros e pedestres: atravessam a rua costurando entre os carros, conduzindo sua moto de delírio.

Entre os veículos também há breves encontros em que os motoristas se enxergam, no tempo impaciente de uma sinaleira, na redução contrariada de um obstáculo. Mas a identidade não é o corpo, é o carro: é o gordo do Gol vermelho, a loira do Audi prata.

O carro é avatar: através dele expressamos, mas também ocultamos nossa personalidade. Isolados, minimizamos o encontro, xingamos tudo o que obstrui o fluxo. Parar nos deixa acuados, o engarrafamento nos desnuda.

No conto de Julio Cortázar A Autopista do Sul, a história se passa numa estrada francesa, num engarrafamento sem razões reveladas. São vários dias de imobilidade, ao longo dos quais os passageiros dos carros vão se transformando em membros de uma pequena sociedade nascente.

A identidade das personagens inclui as características do veículo que dirigem. Organizam-se em grupos, lideranças se consolidam, redes de solidariedade se firmam, intrigas ameaçam a união. Nesse tempo de movimento cessado a vida segue: há doença, um suicídio, até uma história de amor brota do árido asfalto.

O autismo (perdão pela piada involuntária) do trânsito foi sendo suplantado pela empatia do grupo. Subitamente o engarrafamento dissolve-se tão inexplicavelmente quanto se perpetuara. Retomado o movimento da autopista, os carros se distanciam velozmente e sentimos pena dos vínculos que se desmancham. Instala-se novamente o fluxo da impessoalidade.

Deslocar-se não é um trecho fora da vida. Existimos também no tempo em que ainda não chegamos, enquanto “estamos indo” para algum lugar. Por que não incorporar os trajetos na nossa consciência? Andar, pedalar, usar transportes coletivos (que não fossem uma tortura), são formas de locomover-se vendo sutilezas, suportando a existência de outros corpos. Mesmo que todos pareçam tão nus, sem seus cascos, tão frágeis, sem escudo.

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