quarta-feira, 20 de abril de 2011



20 de abril de 2011 | N° 16676
JOSÉ PEDRO GOULART


Mudando de opinião

Fui agorinha a São Paulo para o concerto do Keith Jarrett, grande pianista americano, famoso por tocar de improviso, sem partitura, roteiro ou acompanhamento. Um cara solitário no palco: ele, o piano, e o temor de que possa não funcionar. Você pode comprar o ingresso (caro), ir até lá e neca – no máximo o dó-ré-mi.

Portanto há uma espécie de torcida da plateia: “Vai Keith, isso, boa!”. E quando se sente que ele está conseguindo vem uma exultação e uma exaltação, como se tivesse sido uma criação coletiva. O pianista/antena captando o desejo de todos, das almas que se expressam através das suas disposições silenciosas.

Mas o espetáculo não rolou. A sala era bonita, a noite agradável, o piano afinado; apesar de uns rasgos de formosura aqui e ali, na maioria do tempo foi um pouco insosso. E ao final o músico implicou com algumas fotos tiradas pela plateia. Keith estava desconcertado: o público tinha sido avisado. Ele saiu de cena. O pessoal aplaudiu.

Depois voltou, ainda sob aplausos, e provocou , irritado: “Tirem as fotos agora se é isso o que vocês querem, mas quando eu sentar ao piano, não”. Ok, liberou, muitos pensaram, e dê-lhe flashes e palmas. Em seguida o cara tocou mais uma música e disse que aquela era a última, “a plateia que ficasse com as fotografias”. Fiquei indignado. E eu, seu Keith? Eu que não tirei foto? Depois, pensei melhor e mudei de opinião. Acho que o Keith Jarrett poderia der dito algo mais ou menos assim:

“Prezado público de São Paulo, desestimulado pela conduta abusiva de alguns de vocês, fotografando com esses malditos celulares enquanto eu me espremia para encontrar combinações originais dos meus neurônios já cansados desse improviso contínuo a que eu me obriguei há tanto tempo, quando poderia estar tocando o Köln Concert repetidamente com aplausos muito mais esfuziantes; repugnado pelo fato de vocês não terem entendido nada quando os desafiei, e também incomodado comigo por estar contrariado por coisas assim, que já sei bem como começam e terminam, declaro: isso faz com que o artista em mim morra.

O que resta é um boneco saudoso de si, que toca com pesar, sem felicidade, tentando provocar emoção em um espantalho. A técnica sem emoção desorienta a inspiração. Sinto-me sufocado, esmagado, por saber do vício de muitos em capturar sem entender que o que faço não pode ser enquadrado, ao contrário, depende de fruição. Cada flash escurece a minha luz interna: é uma traição àquilo que viemos fazer aqui.”

Sei lá, acho que ele poderia ter dito algo assim. Mas não foi o que ele fez. Ele não disse nada. Ele foi embora e ponto. Sob aplausos. E mais algumas fotos.

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