
Sem noção
Como anda a sua paciência? A minha chegou ao limite, creio. Sem tempo para contratempos.
Fui fazer exames de sangue cedo. Mal terminei meu comentário na Rádio Gaúcha, às 7h15min, e corri para o laboratório - de mochila e cuia. Como todos sabem, você recebe uma senha de letras e números e tem que conferir os apitos indicativos dos guichês.
Visto que meu atendimento foi classificado como normal, precisaria aguardar 30 pessoas na minha frente. Um exército antes de mim, a esvaziar suas veias. Por um breve momento, desejei adoecer - e não ser normal. Mas logo a religiosidade em mim bloqueou essas perigosas tentações de vitimização.
Trata-se de um calvário previsível: você fica duas horas no laboratório para uma coleta de quatro minutos.
Não há custo-benefício. Coloque na tábua das obrigações e não pense muito em como poderia investir melhor esse intervalo. Eu levo livro, para não me torturar em segredo. Ponho, pelo menos, a minha biblioteca em dia.
Mas, na sala de espera, havia um jovem que não parava de comer. Sem solidariedade alguma, já que todos os demais estavam em jejum havia mais de oito horas. Emergia um clack-clack-clack de pão de queijo. Ou o som de um aspirador nas sugadas do canudo de um refrigerante.
Eu ouvia a dentição dele dentro dos meus tímpanos. Os gelos da Coca-Cola nadavam na piscina do meu ouvido. Para se fartar daquele jeito, provavelmente era um acompanhante, livre das agulhas e da abstinência do café da manhã.
Tentei me concentrar na leitura. Só que a sonoplastia ganhou novo volume: ele começou a assistir a vídeos do Instagram com o som ligado no máximo. Por que as pessoas não usam fone em público? É assim no ônibus, no avião, no trem, em restaurantes.
Os outros são forçados a conhecer seus gostos - um tanto duvidosos. Ele rolava a tela, gargalhava, escutava locuções gritadas, altissonantes, ensurdecedoras.
Até a TV do local estava no mudo - o noticiário com legendas, para não incomodar os clientes -, e ele não se dava conta da própria falta de senso, da ausência de silêncio comunitário.
Quando fui chamado para a baia da coleta, eu só ruminava o quanto o sujeito era sem noção. O quanto era desagradável. O quanto merecia uma lição, um corretivo, para aprender a se comportar na marra. O quanto deveria ser insuportável na vida familiar.
Queria ter falado umas poucas e boas, mas estava muito fraco - sem alimentação - para comprar briga. De repente, enquanto a enfermeira retirava meu material sanguíneo para dezenas de frascos nominados, ele apareceu na salinha:
- Com licença? Você esqueceu seu livro! E me entregou o objeto que eu sequer havia notado ter perdido. Foi extremamente gentil. Educado. Preocupou-se comigo. Saiu do seu egoísmo, do seu lugar, para me socorrer. Antes de condenar alguém, espere. Contenha a hemorragia da raiva.
Hoje, para ser justos, dependemos cada vez mais da paciência. _
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