sábado, 1 de agosto de 2020



Nossos clássicos

A interrupção da produção cinematográfica, além dos prejuízos que está causando ao setor e o vazio que tem instaurado no cotidiano dos que não dispensam a verdadeira tela, permite a constatação de que um capítulo da História do Cinema foi encerrado. Sendo assim, é possível olhar para o passado e nele encontrar aqueles filmes que deixaram sua marca no desenvolvimento e no enriquecimento de nossa arte. Listas dos filmes mais significativos sempre serão contestadas e substituídas por outras, dependendo do critério ou da visão de cada selecionador. 

Tais divergências são igualmente um elemento enriquecedor, na medida em que aumenta o número dos indicados como capítulos significativos na trajetória de cada cinematografia. Há alguns anos, o Congresso dos Estados Unidos, através de sua Biblioteca, selecionou 25 obras cinematográficas, começando com Intolerância e terminando com Guerra nas Estrelas, que passaram a ser protegidas e a integrar o Registro Nacional Cinematográfico daquele país.

Outros países nos quais as cinematecas nacionais são valorizadas adotaram há muito tempo política semelhante. Aqui no Brasil, onde talvez algum congressista tenha ouvido falar em Mário Peixoto e Humberto Mauro, e no qual órgãos de proteção ao patrimônio cinematográfico enfrentam dificuldades e em alguns casos até o desprezo por parte de quem deveria protege-los, todo um patrimônio corre o risco de cair no esquecimento ou então definitivamente desaparecer.

Na história do cinema brasileiro, dois filmes, sem qualquer contestação de sua importância, embora divergências sobre suas formas de expressão, merecem ser chamados de clássicos: Limite e Ganga bruta. O primeiro foi realizado em 1931 e o segundo em 1933. Cada um aponta um caminho. O de Mário Peixoto é obra ostensivamente inspirada nos experimentalismos europeus da década de 1920, mas não se recusa a adotar a paisagem litorânea brasileira como cenário mesmo que dando ênfase a estudo de personagens. 

Seus seguidores foram poucos, mas alguns recursos são originais e marcantes, como a sequência da máquina de costura. Ecos de sua proposta podem ser notados, por exemplo, na obra de Walter Hugo Khouri. Quanto ao filme de Mauro, que começa no cenário urbano antes de rumar para o interior do Brasil, este, sem dúvida, é o marco de uma tendência que culminará nas obras de Glauber Rocha, que mesmo afastando-se da simplicidade do modelo - mas não esquecendo que o cineasta de Ganga bruta por vezes se expressava através da alegoria, como no sonho do sanfoneiro em O canto da saudade - a ele muito deve, inclusive por adotar um modelo que, afastado da xenofobia, procurou antes de mais nada a autenticidade cultural.

Se o cinema é antes de tudo personagens, então três documentários merecem ser incluídos entre os momentos mais significativos da nossa cinematografia: Edifício Master, de Eduardo Coutinho, 2002; Nelson Freire, de João Moreira Salles, 2003; e Santiago, do mesmo cineasta, 2007. O primeiro é um verdadeiro desfile de histórias merecedoras de roteiros, um discurso em defesa de personagens verdadeiros diante da câmera. O segundo, partir do acompanhamento de um artista maior, organiza imagens que retratam a solidão. O terceiro, a obra-prima do cineasta, volta a falar de música e de cinema através do depoimento de um mordomo movido pelo desejo de compartilhar seu entusiasmo pela arte e pela história.

Clássico é também Rio 40 graus, realizado em 1955 por Nelson Pereira dos Santos, inovador por flagrar aspectos até então ignorados, vítima da censura e que, depois da liberação, teve uma histórica sessão de estreia em Porto Alegre, no cinema Imperial. Santos iria realizar depois, mais dois clássicos de nosso cinema: Vidas secas, em 1963, e Memórias do cárcere, em 1984, ambos a partir de originais de Graciliano Ramos. O segundo desses filmes resumia em sua belíssima cena final o momento de um país que se libertava da opressão.

Chuva de verão, 1977, de Carlos Diegues, felliniano em algumas passagens e intensamente brasileiro em outras, também apontava para o futuro. Noite vazia, de Walter Hugo Khouri, 1964, por sua vez, descrevia a trituração do humano pelos rigores da realidade. E Deus e o diabo na terra do sol, polêmico e fascinante, com a brilhante utilização da música de Villa-Lobos, que o cineasta uma vez definiu como o próprio Brasil, é outro que merece integrar a galeria de clássicos, que certamente é muito maior do que o espaço de uma coluna cinematográfica permite.

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