06 DE AGOSTO DE 2020
DAVID COIMBRA
Por que John Lennon decidiu apenas fazer pão
Uma das últimas músicas de John Lennon leva o título de Watching the Wheels. Seria Observando as Rodas. No caso, as rodas do mundo. É uma bela canção, como praticamente todas as de Lennon. Ele a compôs depois de um período de cinco anos em que se manteve afastado do chamado "mundo artístico". Nesse tempo, John Lennon apenas cuidou do seu filho com Yoko, Sean, e do apartamento em que viviam no Edifício Dakota.
Gostava de passar em frente ao Dakota, quando ia a Nova York. Sinto certo fascínio por aquele prédio sombrio. Foi lá, você sabe, que Polanski filmou um dos maiores clássicos do terror, O Bebê de Rosemary.
Uma vez, vi uma madame saindo de lá e entrando num táxi amarelo. Era uma senhora elegante, toda vestida de preto. Ela usava chapéu e caminhava com uma dignidade empertigada. Fiquei pensando que poderia ser uma das vizinhas de Rosemary e um arrepio me correu pelos ombros.
Há um porteiro de libré na entrada do Dakota, e tochas guarnecendo o portão de acesso, coisa muito aristocrática. Madonna queria morar lá, mas os condôminos não permitiram. Não querem mais saber de celebridades entre eles. Uma riqueza discreta é mais do que riqueza: é nobreza.
Mas, voltando à música de Lennon, nessa Watching the Wheels ele conta que as pessoas criticavam sua opção por uma vida familiar, que elas tentavam aconselhá-lo a voltar a fazer o que fazia, que elas não entendiam que ele se sentia muito bem assim. Então, Lennon enfatizava que realmente amava ficar apenas sentado "olhando as rodas do mundo girarem". Ou seja: ele não era mais um protagonista, era um espectador.
Na época em que Lennon lançou esse disco, seu derradeiro disco, li uma entrevista em que ele explicava o sentimento que expressou em Watching the Wheels. Não lembro muito dos pormenores da entrevista, eu a li em 1980, mas lembro que, já na primeira pergunta, o repórter quis saber o que ele andava fazendo nos últimos cinco anos, e Lennon respondeu:
"Pão".
Ele fazia pão. E cuidava do seu pequeno filho e jantava em família e talvez até visse TV à noite. A nova vida de Lennon era pacífica e boa. Uma vida simples, que qualquer cidadão, sem muita fama ou muita grana, pode levar. E foi essa vida que o salvou. "Salvou-o de quê?", perguntará o percuciente leitor. Responderei: salvou-o de si mesmo. Da opulência que não é fortuna, é excesso. Dos risos que não são de amizade, são de bajulação. Dos prazeres que não trazem felicidade.
Lennon podia morar em frente ao Central Park, num edifício que tem o topete de rejeitar Madonna. Lennon podia ter a mulher que quisesse, por mais rica, bela ou famosa que fosse. Lennon podia fazer o que bem entendesse. Mas ele só queria fazer pão em casa, cuidar do filho, jantar com sua mulher e observar as rodas do mundo a girar.
Esse movimento de Lennon, indo de beatle "mais famoso do que Jesus Cristo" a pai de família, repete o movimento que muitos brasileiros fazem hoje em dia e que, de certa maneira, foi responsável, em parte, pela eleição de Bolsonaro. Que movimento é esse? Contarei na próxima crônica.
DAVID COIMBRA
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