terça-feira, 4 de agosto de 2020



04 DE AGOSTO DE 2020
DAVID COIMBRA

Os escravos do século 21

Quando foi inventado o trabalho, inventou-se a escravidão. Não apenas porque o homem não quer se ocupar de certas tarefas, mas porque a escravidão é a base da acumulação de riqueza. Sempre foi assim. Na Antiguidade, os escravos eram colhidos do chão úmido de sangue da guerra. "Ai dos vencidos!", exclamou uma vez o bárbaro Breno, e estava certo, porque os vencidos se viam reduzidos à servidão.

Outro meio eficiente de arregimentar escravos era por dívidas. Neste caso, escravos e senhores faziam parte do mesmo povo. A Bíblia conta com naturalidade a história do jovem Jacó, que se tornaria patriarca dos hebreus: ele se apaixonou pela bela Raquel e pediu sua mão em casamento. O pai da moça, Labão, concordou, desde que Jacó trabalhasse de graça para ele por sete anos. Jacó aceitou o acordo e durante sete anos foi escravo de Labão.

Ao cabo desse tempo, realizou-se enfim o casamento. Na festa, a noiva se apresentou coberta por um véu pudico. Todos comeram e beberam à grande. Tarde da noite, os noivos deslizaram para o leito nupcial. Na manhã seguinte, Jacó acordou e...UARAFÓC... Não era Raquel que estava a seu lado, mas sua irmã mais velha e menos bonita, Lia. 

Jacó foi pedir explicações a Labão, queria fazer uma troca, tinham lhe dado a irmã errada. Labão respondeu que não era bem assim, que não aceitava devoluções. E contou que, naquela região, a irmã mais velha se casava antes da mais nova. Se Jacó quisesse Raquel, tudo bem, mas teria de trabalhar de graça mais sete anos. Jacó gostava mesmo de Raquel, porque topou a proposta e trabalhou como servo outros longos sete anos.

Ou seja: mais do que escravizar alguém do próprio povo, Labão escravizou alguém da própria família.

Foi o cristianismo que arrebentou moralmente com os fundamentos da escravidão. Se todos os homens são irmãos, um não pode submeter o outro. Foi essa contradição filosófica uma das razões para a decadência do Império Romano, que por mil ano se sustentou no trabalho escravo.

Na Idade Média cristã, o feudalismo deu justificativa razoável à exploração do fraco pelo poderoso. Porque os homens, agora, não eram mais propriedades de outros homens; eram propriedades da terra sobre a qual viviam.

Na Rússia, a servidão se estendeu até os anos 60 do século 19, um recorde. Mas a Rússia da época foi exceção. Em toda parte já não se tolerava mais tal instituição.

Os europeus precisavam encontrar uma saída engenhosa para manter o regime de ganho baseado no trabalho gratuito. Encontraram. Havia no planeta um lugar em que viviam homens que, para eles, não eram seus irmãos, porque eram diferentes.

Eram negros.

Essa é a maior tragédia da escravização do homem africano: ele era considerado inferior devido à cor da sua pele. Isto é: uma inferioridade de nascença, impossível de ser removida. Uma dívida você pode pagar. Se você é escravizado por derrota bélica, pode lutar. Mas a sua pele você não pode arrancar. Essa é a insuperável crueldade da raça humana, e por isso o preconceito contra o negro é o pior dos preconceitos.

Mas com a abolição no último país escravagista, o Brasil, a servidão humana foi transferida para o proletariado, que, em troca de quase nada, trabalhava 16 horas por dia, oito dias por semana, como diriam os Beatles. Aí nos socorreu de novo a religião, tão pouco valorizada pelos intelectuais: o protestantismo tem, entre seus pilares, a educação para todos. Não foi por acaso que uma das ações mais importantes de Martinho Lutero foi traduzir a Bíblia para o alemão. O povo devia conhecer a palavra do Senhor. E, para conhecê-la, precisava saber ler.

Esses protestantes, a primeira coisa que faziam, ao fundar uma cidade, era abrir uma igreja e, ao lado, uma escola. A escola pública número 1 das Américas ainda funciona. É a Latin School, de Boston, fundada por protestantes em 1635.

A educação liberta. Libertou os povos de países protestantes da espoliação. Logo, os católicos do Ocidente os seguiram, e o capitalismo selvagem foi ficando manso nessa parte do mundo. Mas a riqueza, para ser acumulada, continua necessitando do trabalho, senão gratuito, barato. Assim, o modelo de exploração foi deslocado para as populações periféricas do mundo. Hoje, a nova África é a China. Ainda há ilhas de servidão em todos os países do Terceiro Mundo, com populações mergulhadas na ignorância, trabalhando muito e ganhando pouco, mas os chineses são mais convenientes para essas lides, por serem também escravos políticos. Há pouca margem para a indignação na China.

Estava chegando ao Brasil, mas acabou o espaço. Prossigo. Aguarde.

DAVID COIMBRA

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