04 DE AGOSTO DE 2020
ARTIGOS
DISTOPIA E CANCELAMENTO
"É preciso não dar de comer aos urubus", aconselhava Torquato Neto, em verso cujo prazo de validade parece mais atual do que nunca. O mundo contemporâneo, como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, dá voltas e mais voltas, sem avançar nem sair do lugar, afundado em preconceitos e barbárie. Temas como racismo, homofobia e desigualdade estão na ordem do dia, como se nada nunca tivesse sido feito para eliminá-los do convívio social que a vida impõe.
Esquerda e direita, no Brasil, salvo engano, estão percorrendo caminhos perigosamente iguais. Essa atmosfera do "nós contra eles", pregada de ambos os lados, afirma, sem constrangimento, que apenas um lado, o seu, detém a primazia da virtude, da honestidade e retidão, o que é uma tendência altamente autoritária e perigosa. A dita "cultura do cancelamento", venha de onde vier, criou, aqui e fora daqui, um ambiente no qual é perigoso discordar de ideias, grupos e até palavras. Proferidas por minorias identitárias, mesmo embaladas em perseguições históricas reais, me soam tão difíceis de engolir quanto os preconceitos de uma maioria com vícios adquiridos ao longo dos séculos.
Gay Talese, aos 88 anos, afirma que não podemos nos curvar às ditaduras, venham elas de onde vierem, sejam elas ostentadas por quem quer que seja. Em nome da igualdade e da justiça, atrocidades jurídicas nos atropelam cotidianamente.
Com suas características, Porto Alegre vive, consciente ou inconscientemente, essa realidade dividida. Em função do ano eleitoral, esse cenário só tende a acentuar o discurso de ódio que muitos tendem a camuflar ou esconder. Ponderação e equilíbrio parecem virtudes de um tempo que acabou. Mas recuso pactuar com ilações e julgamentos prematuros sobre o caráter alheio, muito em voga nestes tempos contaminados por vírus diversos.
A vacina contra a distopia de uma sociedade perturbada sempre foi, e continuará sendo, o bom senso.
LUCIANO ALABARSE, SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURA DE PORTO ALEGRE
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