02 DE NOVEMBRO DE 2019
DUAS VISÕES - Pesquisador, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
E se já não necessitassem um do outro?
O retorno do peronismo na Argentina acendeu alarmes em empresas e ministérios brasileiros. Alberto Fernández, o presidente eleito, quase dedicou o triunfo ao seu "amigo Lula". De seguida, o presidente Bolsonaro recusou felicitá-lo pela eleição. No dia seguinte, Eduardo Bolsonaro celebrou um tuíte no qual apareciam duas fotografias: uma dele próprio, bem macho, rodeado de metralhadoras, e outra do filho do Fernández disfarçado de mulher (ele faz cosplay, uma atividade lúdica na qual os artistas atuam e se vestem como personagens ficcionais). A comunicação da família Bolsonaro visa sempre satisfazer o seu público doméstico, mormente conservador, mas tem consequências além-fronteiras. Podem essas provocações recíprocas deteriorar as relações comerciais entre a Argentina e o Brasil? Vejamos.
Impostos altos com proteção tarifária alta: esse foi o modelo econômico dos membros do Mercosul durante duas décadas. As empresas pagavam muito ao Estado, mas, em troca, não estavam obrigadas a serem eficientes. Mauricio Macri na Argentina e Bolsonaro no Brasil chegaram para mudar esse modelo, acompanhando a abertura econômica com a baixa de impostos. Fracassado Macri, a Argentina ameaça recuar, afastando-se do Brasil imaginado por Paulo Guedes. Bolsonaro promete então expulsá-la do Mercosul.
O antecedente da Unasul demonstra que é possível desmantelar uma organização regional. A diferença é que o Mercosul serve para alguma coisa: além de promover a convivência pacífica entre os seus membros, permite que eles escoem manufaturas de baixa qualidade e alto preço que não poderiam vender noutro lado. Sobretudo, carros. Em contraste com o México, que exporta para os Estados Unidos, os carros argentinos e brasileiros não cumprem requisitos técnicos para circular em países desenvolvidos. Enquanto não melhorar a sua qualidade, essa indústria depende dos mercados vizinhos para exportar.
Ora bem, os carros, como o açúcar, estão fora do Mercosul! Esses dois produtos são sujeitos a regimes especiais negociados entre o Brasil e a Argentina. Isso quer dizer que os governos podem "dar-se ao luxo" de congelar o Mercosul com fins propagandísticos enquanto, fora do radar, negociam a manutenção do acordo automotor.
Desse modo, Bolsonaro poderia encenar uma política externa de direita, e Fernández uma de esquerda, sem estragar os negócios. Porém, dois problemas permaneceriam. O primeiro é a possibilidade de o conflito diplomático escalar para além do cálculo; o segundo é que persista a falta de incentivos para melhorar a produtividade. Verdadeiros estadistas procurariam o acordo, não a briga.
ANDRÉS MALAMUD
Nenhum comentário:
Postar um comentário