sexta-feira, 16 de junho de 2017


16 de junho de 2017 | N° 18873 
CLÁUDIA LAITANO

A claque dos apupos


É legítimo vaiar pessoas públicas no avião, no restaurante, no hospital? Trata-se de um questionamento oportuno, levando-se em conta que, a qualquer momento, podemos cruzar com políticos, jornalistas, empresários, esportistas, artistas, pastores, intelectuais ou celebridades em geral que, por algum motivo, despertam nossos instintos mais primitivos de esculhambamento. 

No Brasil, a catarse verbal tem seduzido radicais de esquerda e direita, doutores e analfabetos, guris de bermuda e senhoras de tailleur. Para além das diferenças, a claque dos apupos compartilha a convicção de que não apenas é aceitável, mas necessário, fazer justiça com a própria goela – em nome de nenhum princípio específico, diga-se, a não ser o alívio momentâneo do próprio fígado.

No teatro, a vaia é deselegante, mas é do jogo. No estádio, é quase parte do espetáculo. Em comícios, manifestações, passeatas, faz parte do script. Nessas situações, vaiam-se os feitos e malfeitos de uma pessoa pública, mas o indivíduo – essa criatura em geral muito mais frágil do que ideias ou ações – fica protegido do constrangimento físico direto pelo contexto em que se dá a manifestação. 

Em aviões, restaurantes, aeroportos, ciclovias, supermercados, escola dos filhos ou qualquer outro ambiente que não esteja diretamente relacionado a sua atividade, a personalidade pública torna-se um cidadão comum – assim como quem a ataca. Se no estádio sou apenas mais um na multidão vaiando o juiz ou o jogador perna de pau, no avião ou no restaurante sou um indivíduo constrangendo outro. Ali, qualquer gesto de intimidação deixa de ser público e passa a ser privado – e quem faz justiça na esfera privada aceita investir-se da autoridade de policial, juiz e algoz.

Se você odeia o síndico do seu prédio, pode ir para a janela vaiá-lo toda vez que o vê cruzando o portão, mas o que isso diria sobre o lugar em que você mora? A esfera privada é sagrada e inviolável. Qualquer tipo de coação, física ou verbal, a um indivíduo fora de um palco, de um estádio ou de um palanque é inaceitável, seja quem for o objeto da manifestação. 

Quando esse tipo de episódio acontece (Guido Mantega em um hospital, Chico Buarque na saída de um restaurante, Maria do Rosário no aeroporto, Marco Feliciano e Miriam Leitão no avião – e a lista não para de crescer), esgarça-se o já puído tecido da civilidade. Ainda assim, esquerda e direita, conforme seus interesses no momento, apressam-se a oferecer explicações – seja desqualificando a versão da vítima, seja sugerindo que, afinal de contas, ela bem que merecia. Mas o fato é que, dentro da ordem democrática e do bom senso, não há argumento que sustente esse tipo de agressão.

Na dúvida, vale a regrinha kantiana quando, sozinhos ou movidos por uma exasperação coletiva, nos perguntamos se uma atitude é moralmente correta ou não: aja conforme os princípios que você acredita que poderiam ser estendidos a todos ao seu redor. Se xingar desafetos pela janela não lhe parece uma boa ideia, constranger em locais públicos as pessoas que pensam de forma diferente também diz mais sobre quem xinga do que sobre quem é xingado.

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