sexta-feira, 16 de junho de 2017



Jaime Cimenti - JC/RS

Memórias da mesa 


Comer e dormir, a segunda e a terceira coisas mais importantes da vida. Ou a primeira e a segunda ou a segunda e a primeira, como queiram, queridos leitores. Esta coluna é democrática e republicana. O alimento é o primeiro prazer das pessoas e o último. Do leite da mamãe até a papinha dada pelos filhos ou enfermeiras, no caminho da vida, o comensal curte milhões de prazeres gustativos, táteis, olfativos e visuais.

Modéstia à parte, nasci na eterna Bento Gonçalves, presente que Deus ofereceu ao mundo, sem demérito, claro, de cidades próximas que valorizam ainda mais Bento e de outras distantes, como Londres, Nova Iorque, Rio e Paris. Toda vez que degusto um cacho de uva, lembro de Bento. Bento em forma de grãos doces. Quando não é época de uva, lembro também. Lá pelo outono aparecia uma nonna gordinha, já bem idosa, cabelos brancos nevados e coque, com a grande cesta de vime cheia de caquis chocolate e manteiga.

A cada ano, ela ficava mais vergada, mas sempre vinha, pontual como o frio. Aparece até hoje e deve estar oferecendo frutas para o São Pedro e a galera lá do andar de cima. Da colônia vinham moças bonitas sentadas, femininas, de lado, nas selas das mulas. No lombo da mula, cestos com as saudáveis delícias rurais: queijos, salames, copas, batatas, cebolas, abobrinhas, cenouras, laranjas, bergamotas, uvas, alfaces, radicci, ovos, pão e outras gostosuras mais.

Domingos de manhã, nossos queridos amigos Benedetti, antes de irem para a missa, nos deixavam ricota fresca. Domingo, aliás, era dia de comer galinha assada com salada de batata com maionese. Angelina, nossa empregada, buscava no galinheiro e matava, no sábado, a vítima do dia seguinte.

O almoço era depois da missa e do passeio no Centro. Depois do almoço, a catequese e os filmes do Gordo e Magro, Tarzan, Três Patetas, Carlitos, Joselito e etc no Cine Popular. Quem ia na catequese pagava ingresso menor. Esse foi um inestimável mimo que a Santa Igreja Católica nos deu. Ah, tinha que se confessar no sábado e ficar de jejum no domingo para a comunhão.

Na catequese, a irmã nos mostrou o quadro "A morte do pecador": um moribundo no leito, acompanhado por uns diabos terríveis. Até hoje tento dormir, tirando aquilo na cabeça e ficando longe dos pecados. Um dia consigo. Minha mãe, italiana, excelente cozinheira, sem ostentação, servia o primeiro prato no prato fundo: risoto, massa ou sopa, quase sempre.

O segundo prato, no prato raso: carne, saladas e alguma guarnição. De sobremesa, no geral, frutas da estação. Pouquíssimos enlatados, conservantes e outras artificialidades. Alguns ingredientes eram de nossa própria horta. Sábado de noite, pizza caseira. Era ótimo, mas tinha um chato para comer, lá em casa, que reclamava. Sempre tem.

Não era eu. Arroz e feijão só a cada 20 dias. Para nós era iguaria. De vez em quando tomava vinho com água e açúcar e aí curtia um baratinho. No dia da crisma dos três irmãos, pintou um faisão no forno, com as penas da cauda. Vinte pessoas na mesa, só uma provinha simbólica para cada um, mas valeu. a propósito...

Já dei umas circuladas pelo planeta. Mas se no hospital, em casa nos últimos dias de vida ou antes de ir para a cadeira elétrica me perguntassem o que eu gostaria como última refeição nesta vida, não teria nenhuma dúvida: pão colonial de forno de pedra, queijo, salame e copa, sopa de capeletti feitos com massa caseira com ovo caipira e recheio e caldo de galinha caipira, mais muita noz-moscada, galeto crocante por fora e macio por dentro com altas doses de sálvia, acompanhado de polenta brustolada na chapa e radicci com bacon.

De sobremesa, sagu de bolinhas gigantes e vinho bom ou creme de leite com ameixas pretas, igual ao que minha mãe fazia nos domingos. Comida de mãe, ninguém esquece, mesmo quando seria melhor esquecer.

(Jaime Cimenti) - Jornal do Comércio - (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/06/colunas/livros/567966-versao-moderna-de-a-lei-do-triunfo.html)

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