10 de junho de 2017 | N° 18868
ARTIGO - Lya Luft
O diabinho no ombro
Outro dia, dei a uma amiga, de presente de aniversário, uma caixinha marchetada de madrepérola, que comprei há muitos anos, talvez na Espanha. Por que não comprei algo novo para lhe dar, amiga antiga e querida que é? Talvez por isso mesmo: dei uma coisa que aprecio muito, que trago comigo há longos anos, onde eu poderia guardar um anel, até cartãozinho carinhoso mandado por alguém – mas estava vazia. Gosto de às vezes passar para alguém especial algo meu, especial. Tenho algumas caixinhas, pequenos potes, que exponho pela beleza ou pelo que significam. Nem todos estão ocupados: alguns, como a caixinha que dei para minha amiga, servem apenas para guardar belos momentos.
“Como se faz isso?”, me perguntou outro dia ironicamente alguém que gosta de mim, mas implica com meus romantismos. “Não sei direito”, respondi, “sei que olho para eles e ali estão guardadas memórias de momentos luminosos”. “Coisa da sua imaginação exagerada e romântica”. “Bem”, respondi como tantas vezes, “a imaginação paga minhas contas, me faz trabalhar”.
O mundo, a vida, nos oferecem uma sucessão de glória e danação, de alegrias e dores, de coisas medíocres ou gloriosas, tédio ou entusiasmo. A vida é assim, e pronto. Só que nós tendemos a prestar especial atenção ao ruim, escandaloso, doloroso, à desgraça, por exemplo, de um vendaval que mata pessoas que dormiam em suas camas, destrói centenas de lares, de plantações, de sonhos e duros esforços.
Queremos saber como acabou afinal uma eleição num país estrangeiro, que poderia causar uma reviravolta em alguns aspectos deste mundo. Como foi o depoimento de um importante e digno figurão americano que talvez derrube o presidente? Quantos mortos no novo assassinato de dezenas de inocentes por um homem-bomba, cujo desejo de destruir não entendo nem quero entender?
Confesso que, embora mantendo-o sob certo controle, trago sentado no ombro um diabinho que faz careta e sussurra no meu ouvido: “Ainda bem que foi longe, que não foram seus filhos, netos, você mesma, seu marido. Sua casa ficou poupada”. Sentimentos quase inconscientes, mas nada louváveis. Enfim. Não somos boa coisa, em geral. Prefiro acumular lembranças felizes em minhas caixas e potinhos que parecem vazios.
O mal fascina? O abismo atrai? O medo nos faz espiar atrás da porta apesar de tudo, e nos leva a olhar para trás, para ver se estamos sendo seguidos por uma sombra, uma pessoa? Nestes tempos, alias, é de bom alvitre... O diabinho no ombro, entre outras loucuras e maldades, às vezes nos inspira a curtir inconscientemente mais os horrores.
Não que a gente goste, aprove, não sinta compaixão, raiva e desejo de evitar tudo aquilo: é uma espécie de frenesi interno que faz com que à beira da estrada os carros parem para ver um acidente – ainda que polícia e bombeiros já estejam ajudando –, faz com que muitos deem risada quando alguém tropeça e cai (detesto isso) ou aprecie filmes violentos onde o sangue jorra e espirram os miolos.
Todos somos muitos, eu sei: somos o bom e o mau. A natureza, que tanto nos maltratou nestes dias, é assim também. Uma amiga minha costumava dizer: “A natureza é bela e cruel. Sublime, só Mozart”. Então, nesta manhã em que depois de tanta sombra o sol se esforça por abrir frestas nas nuvens, xô, diabinho.
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