23 de junho de 2017 | N° 18879
DAVID COIMBRA
A casa cinza
Não muito longe de onde moro, tem uma casa cheia de gente estranha. É um grande e antigo sobrado de madeira, pintado de cinza sujo. Acho que funciona como pensão, porque as pessoas que moram lá não parecem integrantes da mesma família, não conversam entre si, andam sempre sozinhas e vivem cercadas por uma aragem entre o desespero e o desencanto.
Há uma varanda, na frente dessa casa, e ali alguém colocou uma mesinha. Sobre a mesinha, foi acomodado um rádio desses antigos, do tamanho de uma caixa de sapatos. Há também duas cadeiras, uma em cada ponta da varanda. Às vezes, as duas cadeiras estão ocupadas; outras vezes, uma só. A pessoa que se senta na cadeira faz sempre a mesma coisa: nada. O rádio nunca é ligado, permanece mudo em cima da mesa. No lado esquerdo, um homem magro olha o vazio. No lado direito, uma mulher de chapéu olha o vazio. Entre eles, a mesa e o rádio. Por que não ligam o rádio?
Tenho a impressão de que ninguém conversa naquela casa. Eles vivem preocupados apenas com seus assuntos. São pessoas terrivelmente solitárias. São o contrário das crianças. Crianças têm o hábito de falar o que estão pensando e gostam de convivência. Uma criança, para se juntar a outra, só precisa de um ingrediente: da proximidade. Ela não faz ideia de quem a outra é, nunca a viu, não sabe nem seu nome e pergunta:
– Vamos brincar?
E pronto. As duas vão brincar.
Isso me leva a especular sobre o que a vida é capaz de fazer com uma pessoa. Falei em crianças. É claro que as crianças são diferentes umas das outras, cada qual tem sua personalidade. Mas a criança não se move por segundas intenções. Ela é o que é. Por isso, fala o que pensa – ela não se deixa censurar por suas próprias conveniências.
Tome como exemplo um dos atos mais cruéis que o homem pode cometer: o sacrifício de crianças. Várias culturas sacrificaram crianças em nome do aplacamento dos deuses ou da boa fortuna. Os cartagineses, rivais dos romanos, tidos como tão desenvolvidos, colocavam a criança nos braços da estátua de um deus. Abaixo dela, havia um buraco, onde ardia uma fogueira imensa. No auge do ritual, o sacerdote acionava uma alavanca que abaixava os braços da estátua. A criança rolava para o fogo. Seus gritos eram abafados pelos címbalos e tambores que soldados tocavam neste momento. A mãe, horrorizada, tinha de a tudo assistir sem se manifestar, sob pena de ser considerada ímpia ou impatriota.
Sabendo disso, tenho de concordar com o Velho Catão: Cartago precisava ser destruída.
Pelo que ansiavam os sacerdotes cartagineses e tantos outros, de outras nações, que cometiam tais brutalidades?
Ansiavam pela pureza.
Com a morte da criança, eles queriam absorver a pureza da infância, assim como alguns de nossos índios devoravam os inimigos na esperança de lhes assimilar a força e a coragem.
A pureza perdida. Mesmo os maus querem a pureza perdida.
Em que momento a malícia se infiltra na alma humana? Em que momento a criança se transforma em uma pessoa torturada, ou triste, ou simplesmente má? Em que momento se quebra o ovo da serpente?
Mas a principal pergunta é: o que produz essa transformação? Por exemplo: o que a exposição à violência das ruas causará às nossas crianças brasileiras? É o que mais me aflige, ao pensar no Brasil.
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