sábado, 8 de agosto de 2020



08 DE AGOSTO DE 2020

LEANDRO KARNAL

SE ARDE, FUNCIONA?

Encontro sempre alguns alunos do Ensino Médio do fim da década de 1980. Falamos daquela época, revivemos histórias do colégio e dos outros professores. Quase todos tocam no mesmo ponto: relembram a aula que dei sobre Revolução Francesa. O que tinha de especial? Eles aprenderam a cantar o hino A Marselhesa, com música e marcha ao vivo. Transformei um documento histórico em atividade lúdica. Passados quase 30 anos, o que ficou na memória foi isso. E o conceito de girondinos, a Constituição de 1791 e a fundamental categoria de "Antigo Regime"? Bem, passaram para camadas profundas da memória, e o mesmo teria ocorrido no meu cérebro se eu não repetisse, todo ano, aquele conteúdo. Nos alunos, restou a parte lúdica e corporal.

Ao começar a escrever esta crônica, fiz o exercício de me lembrar da aula de história do Ensino Fundamental, na época, Primeiro Grau (para os mais velhos, ginásio). Veio de imediato aula com música também: a professora ensinou uma canção que resumia o descobrimento do Brasil. Você encontra a música na internet, em gzh.rs/DescobreZH. Se alguém souber os autores, por favor, mande mensagem. Era assim: "O almirante português Pedro Álvares Cabral/ No ano de 1500, saiu de Portugal/ Com 13 barcos veleiros do Rio Tejo pro mar/Para nas Índias distantes especiarias comprar/ Mas D. Manuel I rei venturoso chamado/ Aconselhou a Cabral/ Mudar de rota um bocado/ Para evitar calmarias e para saber também/ Se havia como diziam/ Terras na banda do além/ Navegaram vários dias/ Viram um monte afinal/ Que por ser tempo de Páscoa/ Chamaram Monte Pascoal/ E assim numa quarta-feira/ Dia 22 de abril / Foi descoberto afinal / O nosso amado Brasil".

A letra contém coisas importantes: nomes, datas, o tamanho da esquadra, objetivos (Índias e especiarias), o debate entre descobrimento intencional e acidental, roçado de forma salomônica e deixa indelével o dia da semana do descobrimento: quarta-feira. Na forma ritmada da música, fica para sempre.

Não irei debater o poderoso instrumento da música e do lúdico para ensinar. São autoevidentes. Quero pensar além. O professor que deseja ensinar regras de crase pode se esforçar muito para analisar o que significa juntar um artigo feminino "a" com a preposição (ou com o começo dela) e, feita a junção, assinalamos o fato com um acento grave. Se os alunos entenderem o que de fato constitui a crase, não errarão mais.

Se há o artigo feminino, a palavra deve ser feminina. Verbos não possuem artigo, logo, não haverá crase diante de verbo. As palavras masculinas não permitem crase, mas o bom professor explicará que existe a exceção da palavra "moda" subentendida: "Fez um gol à (moda de) Pelé". Explicará crases opcionais como diante de pronomes possessivos femininos e nomes próprios femininos. Basicamente, são os princípios gerais. Porém, há recursos mnemônicos. Devo colocar crase diante da frase "Retornei a São Paulo"? Posso ir pelo caminho estrutural das classes e funções gramaticais.

Também posso ensinar: "Quando vou a e volto da, então crase há; quando vou a e volto de, crase para quê?". Assim: "Vou a São Paulo e volto de São Paulo". Aplica-se o recurso: "Crase para quê?". O versinho foi-me ensinado há quase 50, antes que eu entendesse de classes gramaticais ou da função sintática. Uso até hoje para resolver as dúvidas, como uso a base da articulação dos dedos para saber se o mês tem 30 ou 31 dias. Também penso que estalactite diz respeito à parte superior da caverna porque "tite" remete ao "teto". Para lembrar a geografia dos três países bálticos, lembro que os nomes dos países seguem ordem alfabética de cima para baixo (Estônia, Letônia e Lituânia).

Ensinar não é apenas fornecer boas informações, porém garantir uma rede que as segure. Jean Piaget (1896-1980) destacou o lúdico no processo de fixação. Ninguém duvida da eficácia. Há um debate sobre o modelo que chamaríamos de "ensino tradicional de cursinho", no qual o lúdico, o caráter histriônico do professor, as musiquinhas, as piadas infames e outras servem de uma imensa rede para fixação dos alunos. Critica-se, quase sempre, o apelo até o nível do ridículo sem pensar que ele é um efeito colateral de um determinado modelo de vestibular que pede a um jovem de 17 anos que saiba quase todo o conhecimento humano acumulado em 5 mil anos para uma prova de algumas horas. Hoje, felizmente, há boas exceções no vestibular e cursinhos fora do padrão descrito.

Em resumo: o lúdico funciona. Tudo que envolver corpo e sensibilidade junto ao desafio do conteúdo pode ser eficaz. O principal objetivo do ensino não é distrair ou fazer rir, mas, como queriam os romanos, "atraem-se mais moscas com mel do que com vinagre". A boa educação envolve o divertido e o difícil, sabe alternar e afirma que é bom ter prazer e que há coisas mais complexas que envolvem esforço e que o goût de l?effort francês ("o gosto do esforço") é, também, uma grande descoberta. Erra quem enfatiza demais o no pain, no gain protestante anglo-saxão ("sem dor não existe ganho") e distorce o sentido do aprendizado quem confunde o professor com um artista de stand-up.

O professor que apenas pensa em conteúdo exato e correto e não nos recursos para sua fixação pode estar tão equivocado quanto aquele que confunde a escola com uma plateia em que o ibope é dado por gargalhadas. Na minha infância, o mertiolate tinha de arder como se fosse a picada de mil escorpiões. Hoje, alguns defendem que seja como doce sorvete de frutas do bosque... As duas posturas são problemáticas. É preciso ter esperança no complexo processo de ensinar.

LEANDRO KARNAL

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