sábado, 24 de novembro de 2007



MARCELO YUKA
"Polícia que tortura e mata não tem saída"

Crítico das ações violentas em favelas, o músico e ativista diz que o Rio faz há 300 anos a política de responder a tiros com mais balas

Por FRANCISCO ALVES FILHO

Segurança pública é, para o músico e compositor Marcelo Yuka, um refrão recorrente em suas letras carregadas de crítica social - aliás, é um refrão em sua própria vida.

Em novembro de 2001, ao tentar socorrer uma mulher durante um assalto, ele levou seis tiros que o deixaram paralisado da cintura até os pés. Apesar de viver entrevado numa cadeira de rodas, ele conseguiu retomar a carreira. Apesar de ser vítima da violência, ele conseguiu manter o senso de legalidade e justiça que sempre o norteou.

Prova disso é que Yuka, fundador da banda O Rappa, mostra-se indignado também com a violência das ações da polícia do Rio de Janeiro, que, do início deste ano até o mês de setembro, já resultou na morte de 961 "suspeitos".

Ele se diz estarrecido com as declarações do governador Sérgio Cabral, que legitima essas operações defendendo até a legalização do aborto para as mulheres de áreas carentes como forma de diminuir a violência.

"Isso é muito grave, trata-se de eugenia", diz Yuka. O músico criou um movimento que congrega juristas, acadêmicos e artistas para denunciar essa situação e foi recebido pelo relator da ONU, que investiga os excessos da polícia carioca. Nesta entrevista, Yuka critica a criminalização da pobreza e lamenta um equivocado consenso da sociedade - o de que a violência urbana só pode ser resolvida pela força.

ISTOÉ - O que o levou a criar um movimento contra conceitos e políticas de segurança mais ostensivas ou violentas?

Marcelo Yuka - Quando o governador do Rio defendeu o aborto para a população pobre, como meio de combate à violência, eu achei um absurdo. Era o ventre pobre sendo tratado como gerador do crime.

ISTOÉ - Outras personalidades e políticos, não só no Brasil mas também em outros países, já defenderam teses semelhantes.

Yuka - Um secretário de Educação do ex-presidente americano Ronald Reagan, chamado Bill Bennett, foi à televisão e disse que para reduzir a violência seria necessário facilitar o aborto para a população negra. Isso causou uma enorme revolta e ele sofreu grande retaliação.

Aqui, um governador diz uma coisa dessas, como disse o governador Sérgio Cabral, e não há reação. Fale algo assim em Israel, na Alemanha e veja o que acontece. Essa idéia equivale a criminalizar o pobre, que é a maioria da população.

ISTOÉ - Considera-se o principal crítico dessas políticas de segurança?

Yuka - Eu não me sinto assim. Mas, se ninguém protesta, eu pego o telefone e começo a me articular. Estava em São Paulo, numa reunião da Associação de Juízes pela Democracia, quando comecei a ter essa reação.

Notei que, para cada pessoa que eu mandava um e-mail, ele se multiplicava por três. Não só entre pessoas físicas, mas também em instituições.

ISTOÉ - Há críticas suas à ação na Favela da Coréia, em que policiais atiraram de um helicóptero para matar dois rapazes. A polícia justifica dizendo que eles estavam armados.

Yuka - Juridicamente, o policial pode atirar em alguém se está em risco de morte. Ali, o atirador não queria se defender, estava caçando uma pessoa em fuga. Isso não pode ser uma coisa menor.

Assim como a proliferação dos autos de resistência (documento em que a polícia justifica a morte de alguém como legítima defesa). É preciso cumprir a lei. A idéia de que o traficante, por ser traficante, tem de morrer nas operações policiais é algo absurdo.

ISTOÉ - Na prática, como se dissemina essa idéia?

Yuka - Se um pai reclama que o filho morreu, logo perguntam: "Seu filho estava envolvido com o tráfico?" Se a resposta é positiva, respondem com desdém. "Ah, então...". Eu pergunto: então, o quê? Tenho um primo que está desaparecido há oito anos.

A mãe dele foi aos órgãos de segurança para registrar o sumiço e quando souberam que o rapaz tinha 19 anos e o fato aconteceu no subúrbio do Rio automaticamente concluíram que ele estava envolvido com drogas. Isso está virando senso comum.

Se mora no morro, na periferia, pode morrer, pode sumir. Se mora em área pobre, é traficante e, se é traficante, pode morrer. Agora piorou: se está no útero da mãe que mora em área pobre, pode morrer.

ISTOÉ - Imagina um mundo sem cadeia e polícia?

Yuka - Eu gostaria que aqueles que fizeram isso comigo estivessem na cadeia. Mas sei que não foi uma ação somente de um homem contra mim.

Foi uma ação do homem e também do sistema, foi isso tudo que desabou sobre mim naquele momento. Mas justiça não é vingança. O cara não tem de pagar nem menos nem mais do que a punição prevista na lei. Não quero o criminoso solto, não quero o traficante solto. Quero que estejam presos.

ISTOÉ - O que diria a quem afirma que sem confrontos não há solução para a criminalidade?

Yuka - Parece aquela frase gritada pelo Caveirão: "Saiam das ruas que eu vou roubar a sua alma." Isso não é trabalho de inteligência.

Outra constatação básica: é fácil falar que vai haver vítimas, uma vez que não é a filha do secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, que pode morrer inocentemente porque estava em meio a um tiroteio.

ISTOÉ - E a proteção da população?
Yuka - Mas, se uma criança do local morre com uma bala na cabeça, que tipo de segurança é essa? As autoridades reconhecem que nessas ações vai haver baixas.

Mas baixas entre a sociedade civil que não tem nada a ver com isso? Para quem é essa proteção? Até quando teremos isso?

A tal bala perdida virou ente abstrato, um anjo que levou o filhinho da moradora do morro. Algo sem pai, sem autor, ninguém investiga.

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