segunda-feira, 19 de novembro de 2007



A VERDADE INVEROSSÍMIL

Claude Lévi-Strauss fará 99 anos no próximo dia 28. Lembro-me da última vez em que liguei para ele. Atendeu com uma voz trêmula. Pensei: tirei o homem do túmulo.

O inverno já se alastrava pelo quinto mês consecutivo. Havia um sol no vidro da janela do nosso 'studio'. Na televisão, eu só via a temperatura oscilar entre -1 e 1 grau. Entrevistar Lévi-Strauss parecia ser o único aquecimento possível.

– Estou no aeroporto. Vim do Brasil especialmente para entrevistá-lo – menti. – Sinto muito pelo senhor. Devia ter telefonado antes de embarcar. Não dou mais entrevistas. Bateu o telefone.

Mais um fiasco. Durante 15 meses, batalhei para encontrá-lo. Escrevi-lhe uma carta por mês. Nalgumas, usei pseudônimos ou os nomes e endereços de meus amigos.

Mandava cartas em francês e em português. Lévi-Strauss só respondeu a primeira: 'Estou velho e cansado de jornalistas, mais ainda de brasileiros'. Dias depois, concedeu longa entrevista a uma professora paulista.

Escrevi-lhe mais uma vez. Como ainda era terça-feira, chamei minha vizinha poliglota para corrigir a carta. Irmã de um diplomata já falecido, ela só tomava banho aos sábados.

Por isso, eu a trazia para trabalhar comigo até quarta-feira. Ela não gostou do teor do meu texto: 'Se o senhor não me receber, eu me suicido'. Imaginei que considerasse isso ridículo ou uma chantagem muito barata. Nada disso.

Só estava preocupada com uma polêmica lingüística bem francesa entre passado simples e passado composto. Enviei a carta. Lévi-Strauss ligou para mim. Quando o telefone tocou, senti que a campainha vibrava com outra sonoridade. O velho foi curto e definitivo:

– Não creio que o senhor seja capaz de livrar tão facilmente a humanidade de um estorvo.

Aquela frase acabou com minha depressão. Resolvi viver apenas para entrevistá-lo. Depois, poderia morrer com a honra lavada.

Noutra entrevista, com um antropólogo decadente, comentei as minhas dificuldades. O inimigo do velho me entregou o endereço que durante meses estivera fora do meu alcance. Em pleno inverno, postei-me como um mendigo na frente do edifício da vítima.

No terceiro dia, quando um sol pálido deu as caras, o grande Claude Lévi-Strauss saiu claudicando para uma caminhada. Colei nele.

Ameaçou chamar a Polícia. Prometi esquecer a existência dele se me permitisse acompanhá-lo. Fez um gesto ambíguo com a mão trêmula. Resignado, começou a andar. Fui junto.

Passamos duas deliciosas horas a tagarelar. Lévi-Strauss rejuvenesceu. O Brasil saltitava em seus olhos de repente muito vivos e travessos. Ainda se lembrava do quanto estranhara o fato de os brasileiros dizerem de uma sobremesa 'doce, muito doce' e nada mais.

– Não quero que publique nenhuma linha da nossa conversa – balbuciou Lévi-Strauss, com o fundo cinza da Rue des Marroniers a recortar-lhe o corpo de ancião.

– Por que não? Os leitores brasileiros gostarão de saber que sente mais saudades dos índios do que das elites paulistanas afetadas e chatas.

– Não lhe dei uma entrevista. Apenas conversamos. Talvez por isso tenha dito coisas que o senhor adoraria publicar.
– Isso é um tanto perverso, monsieur Lévi-Strauss. – Foi agradável para o senhor conversar comigo.

Jamais publiquei uma linha, embora tivesse reconstituído todo o diálogo. Perdi o disquete. Extraviou-se com parte da bagagem enviada de navio para o Brasil. A máquina queimou. Certamente me acusarão de mentir. Lévi-Strauss será pela eternidade minha única testemunha.

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima segunda-feira e excelente semana - Estarei um bocado distante fisicamente desta Porto Alegre, mas aqui todos os dias, espero

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