sexta-feira, 30 de novembro de 2007



30 de novembro de 2007
N° 15434 - David Coimbra


Gritos no Centro

Vinha descendo a Borges, caminhandinho, mão no bolso, olhando as pernas de louça das moças, quando ouvi aquele grito. Grito, não: gritos. Urros entre furiosos e desesperados, urros medonhos de mulher. Vi que uma pequena multidão havia se formado mais ou menos em frente ao Cine Vitória para conferir o que acontecia. Curioso, também rumei para lá.

Trabalhava no Centro, naquela época - adorava trabalhar no Centro. No meio do expediente, se me sentisse entediado, saía para espairecer.

Foi o que fiz, naquela tarde. Ia até a Matheus, morder um mil-folhas cremoso com Mirinda gelada, mas não cheguei a entrar na confeitaria - ao ouvir os gritos, desviei para o bolo de gente. Fui me aproximando, afastando cotovelos, cença, cença, até que cheguei à frente da clareira humana, e vi.

Nossa!, era uma mulher de, sei lá, metro e noventa de altura e uns 120 quilos. Gorda, sim, só que, mais do que gorda, grande, forte, braços do tamanho das minhas coxas, coxas da espessura de postes de luz, manoplas de raquete de tênis, pés de zagueiro do Grêmio Bagé, cabeçorra de bola número cinco, boca feito uma cuia de chimarrão, de onde se elevavam os berros de ódio.

Era uma negra retinta, tão negra que a pele lhe reluzia.

Havia se jogado ao chão, onde esperneava e se debatia com violência. A cercá-la, oito brigadianos, que hesitavam: deviam se arriscar a imobilizá-la?

Ficaram ali, em volta da mulher, atentos, meio agachados, com os braços abertos como se fossem goleiros à espera da cobrança do pênalti. Um deles, decerto o oficial, deu então voz de comando:

iam pegá-la! Ficamos tensos, nós na torcida. Os brigadianos saltaram sobre a mulher, os oito em um único movimento, bem treinados como legionários romanos.

Mas aí ela se pôs de pé. Ergueu-se em seu imenso corpanzil e emitiu um grito assustador, que trincou o asfalto da avenida e fez murchar os pastéis da confeitaria.

- UAAAAAAAAAAH! - e, num movimento vigoroso de braços e pernas, espalhou brigadianos para todo lado e saiu correndo, correndo, correndo... na minha direção!

Por Deus, foi esta a cena dantesca que tinha diante dos meus olhos esbugalhados: uma hipopótama enlouquecida despencando em minha perseguição!

Não vacilei: dei meia-volta e corri com todas as forças de meus joelhos e pulmões, sem importar-me com a humilhação de ser visto em fuga pusilânime. Só parei na segurança da Salgado Filho, debaixo do viaduto, onde os espectadores riam convulsivamente e me gozavam:

- Está bem de perna, hein, magrão!

No fim, foi tudo muito divertido. Agora, dias atrás, mais ou menos 25 anos depois, eu ia para a Feira do Livro, tranqüilão, e ouvi gritos. Gritos idênticos!

Ou pelo menos pareciam. Vacilei, mas a curiosidade foi maior do que o medo. Parei. Olhei. Felizmente, não era a mesma mulher. Mas passava por ataque semelhante, gritava e se debatia no chão duro.

No entanto, ninguém se aproximou. Ficaram todos olhando de longe, desconfiados, nem os brigadianos deram-lhe atenção. Gritando ela estava e gritando ficou, não sei por quanto tempo, porque eu também me afastei, tinha mais o que fazer.

Algo mudou, em 25 anos. O porto-alegrense sente mais medo, não se arrisca mais. É outro cidadão. E, principalmente, é outro o Centro. Está mais selvagem, o Centro, mais bruto, não é mais lugar de passeio; é de passagem.

Que saudade do Centro em que se podia ir para espairecer, em que se podia ir só para ver as pernas de louça das moças, para morder um mil-folhas cremoso, para sorver uma Mirinda gelada, onde simplesmente a gente parava para ver.

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