quarta-feira, 28 de novembro de 2007



28 de novembro de 2007
N° 15432 - David Coimbra


A herança do rei

Francisco Rufino de Souza Lobato era o nome do camareiro real encarregado de aliviar sexualmente o rei Dom João VI.

Não se tratava de sacanagem propriamente dita, não vá pensar mal do nosso primeiro soberano, filho da nossa primeira soberana, Maria I, a Rainha Louca, pai do nosso segundo soberano, Dom Pedro I, avô do nosso último soberano, Dom Pedro II. Na verdade, tudo até acontecia de forma bastante pudica e reservada entre o rei e seu dedicado fâmulo.

É que Dom João enfrentava problemas nessa área íntima. A mulher dele, a princesa espanhola Carlota Joaquina, era baixa, magra, manca e tinha bigode. Não bastasse a aparência desestimulante, vivia maquinando para derrubar o marido.

Tentou cinco golpes de estado, fracassou em todos. Mesmo assim, geraram nove filhos, embora os historiadores duvidem da paternidade dos cinco últimos.

Seja. O certo é que Dom João e Carlota Joaquina se separaram antes ainda de vir para o Brasil. Separaram-se de fato, não de direito.

Permaneciam juntos, como um harmônico casal real, durante as cerimônias públicas, mas, em Portugal, viviam em castelos diferentes, depois atravessaram o Atlântico em navios diferentes e, no Rio de Janeiro, moravam em bairros diferentes.

Ao que se sabe, Dom João VI não se entusiasmava com a possibilidade de angariar amantes como alternativa a uma vida matrimonial fracassada. Bem ao contrário de seu filho e sucessor. Dom Pedro I também teve uma vida matrimonial malsucedida, mas reagiu a ela.

E como! Ano passado, estive em Viena e fui visitar o palácio de Maria Tereza da Áustria, a mãe de Leopoldina. Essa Leopoldina viria a ser a primeira imperatriz do Brasil, ao casar-se com Dom Pedro. No giro pelo castelo, passamos por um retrato de Dona Leopoldina.

A austríaca que nos guiava apontou para o quadro, falou brevemente de Leopoldina e, a seguir, começou a desancar Dom Pedro. Tratava-se de homem violento, disse a guia. Um bruto. Um selvagem. Era dado a acessos de fúria e, num deles, matou a infeliz Leopoldina a pontapés.

Não cheguei ao ponto de me alçar em ardores patrióticos a fim defender o proclamador da nossa independência, mas fiquei em dúvida. Terá Dom Pedro realmente assassinado Dona Leopoldina? Preciso pesquisar.

Mas voltando a Dom João. Sabe-se apenas de uma única amante sua, da qual se destrinçou antes de emigrar para o Brasil. Uma só. Tão contido, para a época, que beirava o escândalo. Suponho que, por ser um preguiçoso militante, Dom João talvez achasse que amantes davam muito trabalho.

No que tinha toda razão - um relacionamento com uma mulher não é tão-somente um relacionamento; é um empreendimento, algo cheio de conseqüências imprevisíveis e, geralmente, dispendiosas.

Assim, Dom João dispensava as mulheres. Preferia o camareiro Rufino, que o masturbava com devoção na alcova real, sendo promovido inúmeras vezes por seus competentes serviços.

Tais pormenores acerca de Dom João eu os li no ótimo "1808", de Laurentino Gomes, que descreve um rei com pernas e nádegas extraordinariamente gordas, lábio inferior pendente e vontade fraca.

Dom João tinha medo de caranguejos e trovoadas, jamais tomava banho e usava sempre a mesma roupa, cheia de bolsos nos quais guardava pequenos frangos desossados fritos na manteiga, que ele devorava ciosamente entre as refeições.

Falava de si mesmo na terceira pessoa. "Sua Majestade quer comer". "Sua Majestade está com sono". Hábito de reis, como Pelé demonstrou mais tarde.

Foi esse monarca quase boçal que enganou ninguém menos do que Napoleão, em 1807. Napoleão exigia que Portugal rompesse com a Inglaterra e participasse do bloqueio continental.

Dom João prometeu que romperia. Não rompeu. Foi postergando a ação, enquanto se preparava para fugir para o Brasil. Fugiu, deixando Napoleão a suspirar:

- Foi o único que me enganou.

Poucos entendem como Dom João VI conseguiu essa proeza. Acontece que as qualidades que Dom João empregou nela são também os seus defeitos.

Que transmitiu aos brasileiros, como uma herança de sangue. Nossa elogiável tolerância, nosso detestável desleixo. Com seus predicados, o brasileiro se concede toda criatividade e forja gênios da bola.

Com suas deformidades, deixamos que parte de um estádio desabe por falta de conservação. Tudo culpa de Dom João VI. Tudo graças a ele.

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