quarta-feira, 21 de novembro de 2007



David Coimbra

Quando engordei 26 quilos

Quando fui para Criciúma, trabalhar no Diário Catarinense, tinha 23 anos e 64 quilos. Quando voltei para Porto Alegre, estava com 27 anos e 90 quilos. Vinte e seis quilos em quatro anos, seis quilos e meio por ano, mais de meio quilo por mês, uns 180 gramas por semana!

Isso porque, todas as tardes, eu e meu amigão Ricardo Fabris saíamos do treino do Criciúma, nós que éramos repórteres, eu no Diário, ele em A Notícia, concorrentes duros porém amigos leais, então nós saíamos da cobertura do treino e parávamos numa padaria que havia no caminho.

No balcão envidraçado da padaria oferecia-se aquela torta de morango. Oh, como me lembro daquela torta de morango... Era molhadinha, cremosa, doce, mas não muito.

Era uma torta suave e fresca, que vinha em uma porção generosa, meio tijolo de torta amarela e vermelha sobre o pires branco. O Ricardo volta e meia esquecia o dinheiro em casa.

- Me paga uma tortinha?

Eu pagava, e o café também. Todas as tardes aquela torta. À noite, lombinho à moda russa. Por Deus, lombinho à moda russa. É que existia um bar, o Recanto do Fritz, do nosso amigo Cláudio Ends, um alemão da Alemanha, não esses nossos falsificados da colônia, e esse alemão era campeão de torneios de cozinha.

Quer dizer: os pratos que ele fazia eram obras de arte, a gente comia e se emocionava. E, para arrematar, o Cláudio tirava um chope com carinho de mãe, um chope que era um afago. Eu sorvia aquele chope e ficava com lágrimas nos olhos. Tinha vontade de aplaudir:

- O autor! O autor!

Passávamos as noites no Fritz, até porque algumas moças interessantes freqüentavam o lugar, inclusive uma loira de pernas longas e torneadas e seios rijos e nádegas redondas e... Bom. O que importa é que lá adquiri os malditos 26 quilos, o que me impediu de usar uma calça Gledson de que gostava.

Em Criciúma, aprendi que um homem não pode levar à boca tudo o que os olhos desejam. Não depois dos 23 anos de idade.

Aprendi mais. Por exemplo, uma vez que descobri uma lista de dispensas no Criciúma. Uns 15 jogadores no total, alguns de bom prestígio. Publiquei a matéria, rendeu a maior repercussão. Ao chegar ao estádio, à tarde, senti a tensão no ar.

- O Lori está uma onça - disse-me o Ricardo.

No domingo haveria um jogo importante contra o Joinville, os jogos contra o Joinville sempre eram importantes. O Lori estava no campo, dando treino. Viu-me de lá e de lá veio, pisando firme dentro de seus tênis, bufando e rosnando. Os outros repórteres, havia vários em volta, me alertaram:

- Vai dar xabu.

Fiquei firme. Ele já chegou com o dedo em riste, xingando. Mas xingando! Fui chamado de tudo, de mal-intencionado a espião do Joinville, sempre em altos brados.

Sobrou inclusive para a minha mãe, a Dona Diva, que, a 300 quilômetros de distância, fritava seus famosos bolinhos de batata inocentemente. Eu ouvia todos aqueles impropérios e pensava: o que devo fazer? Discutir com ele? Gritar mais alto? Partir para a briga? Retirar-me? Permaneci frio, pelo menos exteriormente.

Esperei que terminasse a fieira de afrontas, respirei fundo, levantei o bloquinho e apoiei nele a caneta Bic. Em seguida, perguntei, no tom mais profissional que consegui:

- O senhor está dizendo isso em off ou posso publicar?

Ele deu-me as costas e se foi, furioso.

Eu estava constrangido, chateado, nervoso e, sobretudo, em dúvida: teria procedido corretamente? Trinta segundos depois, tive a resposta. O Ricardo Fabris me abraçou e disse:

- Foste perfeito. Hoje eu pago a torta!

Saí do estádio ainda nervoso, mas, na última bocada da torta de morango, estava tudo bem. Passados alguns dias, o Lori me procurou, pediu desculpas. Não se trata de técnico mau caráter, longe disso. Foi um arroubo. Um momento de fúria. Semanas depois, a lista que publiquei se confirmou.

Meses depois, Lori saiu do clube. E foi isso que aprendi: os técnicos, os jogadores e os dirigentes passam. Os repórteres, os torcedores e o clube ficam.

Por isso, não me tocam arrufos de treinadores ou dirigentes. A nenhum repórter deve tocar. Não há briga no futebol que valha uma fatia de torta de morango.

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