sábado, 4 de maio de 2024


04 DE MAIO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

A viuvez dos separados

Meu amigo Fabricio Carpinejar antecipou o assunto, numa bela crônica publicada em 26 de abril, onde discorreu sobre a sensação de ser viúvo/a de uma pessoa com quem já não se é casada. No dia anterior, eu havia enterrado meu ex-marido, e li as palavras do Fabricio com a alma ainda quente. Ele mais uma vez foi certeiro em sua percepção. Estava escrevendo sobre minha história com o pai das minhas filhas.

Foram 21 anos juntos e 18 anos separados, numa relação que nunca terminou, apenas mudou de status: de cônjuges para amigos. Muitos ao redor destacavam nossa civilidade, o que para nós soava esquisito, qual o estranhamento? 

Depois de uma relação de amor e de uma família construída, como poderia restar apenas frieza e distância? Sei que traições, brigas, disputas financeiras e tantos outros fatores podem conduzir a um fim radical, mas houve uma época em que o casal se amou de tal forma que investiu na eternidade do relacionamento. Se, mais adiante, a separação foi o caminho encontrado para aliviar desavenças, nem por isso a eternidade precisa ser cancelada. 

Separações podem ser atos de amor. Ao constatar que já não pensam parecido e o desejo se bifurcou, toma-se a atitude prévia de se separar, antes de se tornarem grosseiros e secos. Afastam-se parcialmente, sem desfazerem o vínculo por completo. Óbvio que não precisam sair para um chope toda semana, talvez fiquem sem se ver por anos, mas preservam o respeito e a amizade. Sabem que poderão contar um com o outro para sempre, o verdadeiro "para sempre" a ser considerado.

Até que a morte os separe, dizem os padres em cerimônias religiosas de casamento. Dias atrás, esta frase ainda me parecia um ultimato obsoleto. Duração não é um valor em si, as pessoas têm o direito de amar e desamar, elas se transformam e ninguém garante que quem está ao lado acompanhará as mudanças, portanto, que se separem quando forem esgotadas as possibilidades de ser feliz junto. As crianças sofrerão, mas um dia irão compreender que a paz é preferível a um ambiente contaminado por frustrações.

No entanto, "até que a morte separe" ganhou novo sentido para mim, me parece uma frase simpática inclusive para uso numa audiência de divórcio. Matrimônios acabam e o que se faz com a antiga intimidade? Reaproveita-se para iniciar uma relação de desapego, mas intacta em sua essência amorosa - até o fim.

Meu estado civil virou uma abstração, já não me sinto divorciada, mas viúva não sou, ao menos não a única: outros amores ele teve, importantes também. O que resta agora é o orgulho de ter feito parte da vida de um homem especial que se foi. De bônus, confirmei que finitude é um conceito relativo. Às vezes, nem a morte encerra tudo.

MARTHA MEDEIROS

Nenhum comentário: