02 DE NOVEMBRO DE 2019
CARPINEJAR
Segurando o amor pelos dentes
Eu sei de onde tenho a sensação de que sempre chego atrasado para o que desejo.
Dos botecos de estrada do Rio Grande do Sul! Nunca o atendente gaúcho diz que não existe tal comida, ele desconversa. - Tem, mas acabou.
Já espio o prato do freguês sentado no balcão, ao meu lado, para conferir se não está se deliciando com a última porção da iguaria que recém solicitei. Alimento uma raiva desse eufemismo. Melhor avisar simplesmente que não tem, ponto, assim não sofro com a ilusão. Para que jogar na minha cara faminta que acabou? Nunca descobrirei se é verdade ou mentira. Na dúvida, fico com o mal-estar de ter aparecido cinco minutos depois.
O que mais anseio em minhas andanças profissionais é competir com o meu pai pelo pastel perfeito e pela torrada insuperável. O pastel tem que ser do tamanho de um ofício A-4, com recheio até a metade, e uma rodela de ovo com o relevo aparecendo na massa crocante.
A torrada precisa contar com salaminho fino, queijo de colônia e pão feito em casa. Dourada como a primeira luz da manhã, evaporando uma leve e perfumada camada de manteiga.
São os nossos pré-requisitos. Paro em tudo o que é muquifo para revelar ao mundo algum talento desconhecido. Demoro três vezes mais para alcançar o meu destino.
A aparência não é decisiva - os nossos lugarzinhos prediletos mostram-se simples e desajeitados, caracterizados pela toalha de plástico na mesa, café já adoçado e cadeiras mancas.
É uma obsessão familiar. Realizamos listas dos campeões, cada um tem o seu caderninho com notas e avaliações.
Quanto mais longe e escondido, melhor. Partilhamos um Trip Advisor antes mesmo do surgimento dos aplicativos de cotações.
Como ele é mais velho do que eu, vive me humilhando com roteiros secretos e antigos dentro das cidades. Busco compensar me aventurando em estabelecimentos inaugurados há pouco, que ele nem ainda ouviu falar.
Meu maior prazer, superior a encontrar o pastel e a torrada dos sonhos, é telefonar ao pai para esnobá-lo:
- Achei um local incrível, que você não deve conhecer, mordi o paraíso, nem imagina.
Com gosto sádico, pressinto, nas lacunas, o seu silêncio mastigado, a salivação enchendo a boca, a gula invejosa. Eu maltrato o meu pai, ele me maltrata, nosso amor é feito de torturas e de vinganças, mas seguramos a vida um do outro pelos dentes.
CARPINEJAR
Nenhum comentário:
Postar um comentário