domingo, 14 de janeiro de 2018


Os intangíveis

Folhapress
Na informática, maior valor adicionado não está nas máquinas, mas sim no software
Na informática, maior valor adicionado não está nas máquinas, mas sim no software
Meu primeiro curso de economia foi de "economia brasileira", como aluno ouvinte. Matéria da graduação da FEA-USP ministrada por José Roberto Mendonça de Barros no segundo semestre de 1986.

José Roberto, profissional com carreira muito exitosa, tanto na academia –estudos sobre história econômica e economia agrícola– quanto no setor privado –lidera há anos sólida empresa de consultoria–, ficava a cargo da disciplina mais interessante e complexa da grade da graduação. Éramos apresentados à história econômica brasileira do período do café, a partir de 1860, aproximadamente, até a época atual, no caso, os conturbados anos 1980.

O jovem físico (isto é, eu) achava, como é comum entre os físicos, que o desenvolvimento de uma sociedade resultava do domínio das técnicas mais avançadas e da produção de bens mais complexos. Achava que o orçamento da Nasa e do Pentágono e a política de compras do governo americano eram responsáveis pelo desenvolvimento daquela sociedade.

Era entusiasta da reserva de mercado de informática. Essa política pública era muito popular entre os físicos à época. Lembro-me de meu professor da disciplina de "fenômenos aleatórios em física" entusiasmado com os computadores que produzíamos. O que o desanimava era o custo: "Samuel, temos um problema de custos...".

Perguntei a José Roberto sobre a reserva de mercado. Sorrindo para o jovem físico e sabendo que iria desapontar, falou: "Nessa área, o maior valor adicionado não está nas máquinas, no hardware, mas sim nos programas, no software. É aí que o ganho se encontra. A reserva de mercado obrigará nossos programadores a trabalhar com as piores máquinas. Não vai funcionar". José Roberto, em 1986, sabia o que muito economista não consegue entender até hoje.

A esquerda (mas não somente a esquerda) tem particular dificuldade de entender que o crescimento não é produzir coisas tangíveis. Talvez a leitura, por gerações e gerações, de "O Capital", obra escrita no início da segunda Revolução Industrial, e a referência obrigatória a diversos escritos de Lênin –autor do auge da segunda Revolução Industrial, aquela do aço, das grandes siderúrgicas e seus gigantescos altos-fornos, das usinas hidroelétricas e do motor a combustão interna–, tenham moldado essa visão de mundo. Desenvolvimento econômico ficou associado a produzir navios, locomotivas, carros e armas –tanques, canhões, grandes encouraçados etc.

Lembro-me de minha infância e de minha avó horrorizada com o fato de os atravessadores ficarem com toda a margem de comercialização de um litro de leite. De fato, rápida consulta à internet indica que um litro de leite na porteira da fazenda custa por volta de R$ 1, enquanto na prateleira do supermercado sai por uns R$ 2,5. Naquela época, com pior infraestrutura e sem os ganhos da tecnologia de informação, essa diferença deveria ser ainda maior.

Foram necessárias muito reflexão, aula de microeconomia e introspecção para que o jovem físico se convencesse de que um litro de leite na prateleira de um supermercado é produto muito distinto do que um litro de leite na porteira da fazenda. E que, de fato, há muito trabalho para retirar o leite da fazenda e colocá-lo certificado, com prazo de validade, na prateleira de um mercado a 50 metros da casa do consumidor.


Infelizmente boa parcela das políticas de desenvolvimento econômico adotadas nos últimos anos é informada pela visão pobre descrita neste artigo. Repetimos erros e desperdícios. 

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