segunda-feira, 8 de janeiro de 2018


08 DE JANEIRO DE 2018
DAVID COIMBRA


Em busca do mate, abaixo de zero

Acabou o mate e fazia muito frio. Quatorze abaixo de zero. Peguei meu pala, meu chapéu de barbicacho e anunciei, falando grosso:

- Vou lá comprar mate!

Na verdade, não se tratava bem de pala nem exatamente de chapéu de barbicacho, e sim do traje típico do inverno no norte do mundo: jaqueta térmica e touca grossa. Mas me sentia um Capitão Rodrigo estuante de bravura e orgulho gaudério, ao decidir enfrentar as intempéries. Então, de certa forma, era como se me pilchasse. E estufei o peito e bradei, como se cantasse o hino do Rio Grande:

- Eu vou. Eu vou, sim!

- Chama um Uber - sugeriu a Marcinha, meigamente.

- De jeito nenhum! - rebati, erguendo o queixo. - Sou gaúcho! Vou a pé!

Em seguida, olhei para o Bernardo e perguntei:

- O que que eu sou?

- Gaúcho!

- Isso! Gaúcho! Vou a pé!

O lugar onde compro mate é um mercadinho brasileiro que fica em Allston, a meia hora de caminhada. Gosto de ir a pé para ver a paisagem que vai mudando à medida que saio de uma comunidade para entrar em outra. Brookline é uma cidade familiar, centrada na educação básica e fundamental, na segurança pública e na limpeza. Uma cidade para criar crianças. Allston é um distrito da chamada "noite forte", onde moram músicos e imigrantes solteiros vindos da Rússia, da Colômbia, da América Central e do Brasil. Impostos diferentes, mundos diferentes.

Saí para ver esses mundos. Saí, sim, senhor! Calçava botas impermeáveis, vestia cuecões, até balaclava usava. Avançava em meio à neve só com os olhinhos de fora. Calculei que levaria mais de meia hora, porque é preciso cuidado para caminhar na neve, que, em alguns pontos, congela e fica perigosamente escorregadia. Mas me fui.

E me fui e me fui e me fui.

O clima, aprendi, funciona como a idade: as grandes mudanças se dão de sete em sete - anos para a idade, graus Celsius para o clima. Quando a temperatura chega a sete sub zero, as coisas realmente começam a ficar difíceis e mais difíceis se tornam nos 14 sub zero e, depois, nos 21 negativos, ficam terríveis.

Tenho luvas apropriadas para cada etapa, porque é nos dedos da mão que a gente sente a dor do frio. Dor mesmo. Dor de doer.

Nesse dia da busca ao mate, calcei minhas luvas de nível 3, as mais quentes. Só que, com 10 minutos de caminhada, já sentia as mãos doendo. O ar frio se imiscuía pelos sete buracos da cara e pelas frestas de roupa e me congelava os ossos e o espírito e eu bufava e resfolgava, até que, lá adiante, vi um café. É para lá que vou, decidi. E me fui.

E me fui e me fui e me fui.

Andava olhando para o interior iluminado do café. Parecia um lugar bem quentinho. Mas estava tão longe. Meu avanço era lento, como se estivesse em um pesadelo. Tive a impressão de ter levado meia hora para chegar lá. Ao entrar e sentir o calor do aquecimento central, exclamei, para estranheza dos americanos:

- A la fresca!

Pedi um cappuccino, temperei com bastante canela, acomodei-me numa poltrona macia como beijo de mãe e joguei uma partidinha de xadrez no celular. Enfrentei um russo, é sempre difícil jogar contra russos. Meti-lhe um gambito dinamarquês arriscado e venci galhardamente. Ao dar o xeque-mate, disse de mim para mim, causando novo estranhamento no lugar:

- Sou gaúcho!

Sendo gaúcho, resolvi ir adiante. Tinha de comprar o mate e não ia desistir. Não ia me mixar pra um friozinho de 14 abaixo de zero. Amanhã, sigo adiante no meu caminho.

DAVID COIMBRA

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