sexta-feira, 26 de janeiro de 2018


26 DE JANEIRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Rumo à Terra Prometida



Você lê uma antiga e triste história da Bíblia e entende um pouco do Brasil.

Vá ao desfecho do Deuteronômio. Lá está:

"Nunca mais surgiu em Israel profeta semelhante a Moisés, com quem o Senhor tratasse face a face".

Veja a importância do homem: ele conversava com Deus em pessoa, se é que se pode chamar Deus de pessoa. Mas, ainda que desfrutassem de tamanha intimidade, o Senhor não permitiu que Moisés pisasse na Terra Prometida. O mesmo Deuteronômio descreve assim a morte do profeta:

"Moisés subiu das planícies de Moab ao monte Nebo, ao cume do Fasga, defronte de Jericó. E o Senhor lhe mostrou todo o país e disse: ?Esta é a terra da qual jurei a Abraão, Isaac e Jacó. Eu a darei à tua descendência. Tu a viste com teus próprios olhos, mas nela não entrarás?. E Moisés, o servo do Senhor, morreu ali, na terra de Moab, conforme o Senhor havia dito".

Por que não foi permitido a Moisés entrar na Terra Prometida? Por que ele teve de vagar durante 40 anos pelo deserto, andando quase que em círculos, e ainda assim não alcançou o lugar para onde queria ir?

A Bíblia não deve ser interpretada literalmente. Importa é o que o autor queria dizer com a história que contou. Esses 40 anos de êxodo do povo hebreu são simbólicos. Porque, ao cabo deste tempo, todos os que tinham experimentado a escravidão no Egito haviam desaparecido, inclusive Moisés. Isto é: a Terra Prometida foi habitada por um povo livre também na alma. Ninguém sentia mais os efeitos do trauma da servidão.

Nós, brasileiros, carregamos muitos fardos do passado e por eles somos marcados. Entre tantos, por coincidência, o de termos sido o último país do mundo a abolir a escravidão. Mas não é desse trauma que quero tratar aqui, e sim de um mais recente: aquele causado pela ditadura, que é outra espécie de servidão.

Em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães subiu à tribuna do Congresso para promulgar a Constituição escrita exatamente após o fim do governo militar. Em seu discurso emocionado, bradou:

- Nós temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!

De certa forma, aquela Constituição foi escrita com as tintas escuras deste ódio. O horror à ditadura e o medo de que ela um dia retornasse pautaram os constituintes. Eles desenharam o Brasil do futuro olhando para o passado.

No fim daquele discurso, Ulysses gritou:

- Muda, Brasil!

E seu desejo se cumpriu. O Brasil mudou devido à Constituição. Em muitas coisas para melhor. Em outras, nem tanto. Aquela Constituição ajudou a confundir autoridade com autoritarismo, punição com arbitrariedade. Os brasileiros passaram a lutar acerbamente por seus direitos e esqueceram que têm deveres. Pior: as garantias que a Constituição assegura foram (e são) usadas como privilégios pelos mais fortes, em vez de servir de proteção aos mais fracos.

Temendo a ditadura como se ela fosse os exércitos de Ramsés II, passamos esses últimos 30 anos vagando pelo deserto, aparentemente sem rumo, obtendo algumas conquistas, sim, mas sofrendo mais do que usufruindo.

Precisávamos desse tempo para nos limpar desse mal, como o povo de Moisés se limpou da escravidão. Olhe para os novos magistrados do Brasil. São jovens que praticamente não sentiram o trauma do regime militar. Eles sabem que o Brasil mudou, que o mundo mudou, e que o que era tolerado antes não pode ser tolerado agora.

Mas o mais alvissareiro é que a mudança começou de baixo para cima. Pelos funcionários públicos de carreira. Pelos jovens policiais, promotores e juízes. O Judiciário já experimentou esses novos ares. Que logo bafejarão os eleitos. Que farão novas e melhores leis. O Brasil está se transformando. E, quem sabe?, poderemos um dia pisar na Terra Prometida.

david.coimbra@zerohora.com.br - DAVID COIMBRA

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