sexta-feira, 12 de janeiro de 2018


12 DE JANEIRO DE 2018
DAVID COIMBRA

O que dizer antes de morrer

- Estados Unidos, David! Tu tens que ir para os Estados Unidos!

Essas duas frases, com seus dois pontos de exclamação espetados no final, me foram ditas pelo doutor Fábio Franke há quase cinco anos. Lembro bem daquele momento. Era um dia bonito, de temperatura amena. Estávamos no hospital de Ijuí, sentados frente a frente, separados pela mesa de trabalho dele. Eu acabara de sair de um exame de tomografia e o resultado não havia sido bom.

Por que Ijuí? Porque lá se desenvolvia um estudo de uma nova droga contra o câncer. Meses antes, havia entrado no estudo. Ou seja: dispus-me a ser cobaia. Mas não consegui o remédio que queria, por motivos que agora não cabe explicar. O fato é que a droga que tomei não funcionou e eu não tinha mais muitas alternativas, até que o Fábio imprimiu essa frase na minha mente:

- Estados Unidos, David!

Começamos a trabalhar essa possibilidade, ele conversou com outros dois médicos que acabariam sendo decisivos na minha vida, Carlos Barrios e André Fay, e fui para a rodoviária, tomar o ônibus de volta para Porto Alegre.

Era nesse ponto que pretendia chegar: eu dentro do ônibus, naquela tarde de sol, sentado na poltrona que dava para a janelinha, sem nenhum outro passageiro ao lado. Não sabia o que aconteceria, mas as chances de continuar vivo por mais de um ano não eram grandes. Senti-me como deve ter se sentido a moça de quem escrevi ontem, Catieli, que morreu de câncer em 2016. Ao saber que lhe restava pouco tempo, ela passou a escrever cartas para seu filho, Matheus, que então tinha oito anos de idade. Reproduzi três dessas cartas. Vários leitores se comunicaram comigo, dizendo-se emocionados com aquela mãe que, em seus últimos dias, só pensava no futuro do filho.

Para mim, as cartas de Catieli foram especiais, embora tão singelas. Porque, naquela tarde, dentro daquele ônibus, reagi como ela. Pensei: meu filho é pequeno. Quando ele for adulto, pouco vai se lembrar de mim se eu morrer agora. Então, decidi escrever um livro para ele. Tomei de um bloquinho da Zero Hora, que estava dentro de uma bolsa no banco ao lado, e pus-me a fazer anotações. Como devia ser o livro? O que tinha de lhe contar? Qual era a mensagem que precisava transmitir?

Ao chegar em casa, naquela mesma noite, comecei a escrever. Mas, como você sabe, não morri naquele ano, nem no seguinte. A frase do doutor Fábio, "Estados Unidos, David!", acabou sendo o código para que continuasse vivo e bem e forte e, por isso, mudei um pouco o projeto. Não escrevi só para o meu filho. Escrevi pensando que, talvez, outras pessoas se interessem pelo que tenho a contar acerca de algumas questões cruciais da existência. Nesta semana, terminei de escrever o livro. Justamente na semana em que publiquei as cartas de Catieli.

Para mim, foi uma coincidência importante. Porque as cartas de Catieli tentavam dizer a seu filho o que, antes, eu queria dizer exclusivamente ao meu e que, agora, tentarei dizer a outras pessoas. É algo tão simples, tão óbvio, tão comum. Algo que digo ao meu filho todas as noites, antes de ele ir dormir. Algo que digo para mim mesmo, sempre que o dia acaba. Algo que me move a cada hora e a cada minuto: que a vida é boa. Só isso, meu filho: a vida é boa.

DAVID COIMBRA


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