27 DE JANEIRO DE 2018
CAUÊ FONSECA (INERINO)
LULA, ENTRE O BRONZE E A CARNE
Chamou atenção o finalzinho da manifestação do procurador regional da República, Maurício Gotardo Gerum, durante o julgamento que tornou Porto Alegre o epicentro político do Brasil na quarta-feira passada. Falando, é claro, do réu Luiz Inácio Lula da Silva, o procurador citou Crime e Castigo, a crise de consciência em forma de romance escrita por Fiódor Dostoiévski. No trecho, enquanto pensa na velha agiota que assassinara, o protagonista Raskólhnikov devaneia sobre Napoleão:
- O verdadeiro soberano, a quem tudo é permitido, esmaga Toulon, faz uma carnificina em Paris, esquece um exército no Egito, sacrifica meio milhão de homens na campanha da Rússia e se safa com um calembur em Vilna. E ao morrer é transformado em ídolo. Logo, tudo lhe é permitido. Não, pelo visto esses homens não são de carne. São de bronze.
Gerum então se apruma para fechar sua participação com uma frase de efeito:
- Em uma República, excelências, todos os homens são de carne.
Carne, pensei cá com meus botões, por alguns muito bem protegida pelas armaduras da imunidade parlamentar ou do foro privilegiado. Mas tudo bem, o que achei curioso mesmo foi a citação ao bronze. Porque Lula há muito não está lutando com unhas e dentes pelo direito de voltar a ser presidente da República. Político experiente que é, duvido que ele mesmo se enxergue subindo a rampa do Palácio do Planalto em 1° de janeiro de 2019 e tomando a faixa verde-amarela de Michel Temer. Lula está lutando justamente pela sua versão em bronze. Pelo que será lembrado.
Me pergunto se Lula, ao olhar para o espelho e enxergar aquele misto de cansaço e fúria das capas de jornal da última semana, já se perguntou quais foram os seus grandes erros desde 2010, quando deixou o poder como o preferido de líderes de Estado como o francês Nicolas Sarkozy e o português José Sócrates para ser secretário-geral da ONU. Aquele para quem Barack Obama apontou em 2009 e disse: "Esse é o cara!". Desconfio que esses erros não têm nada a ver com triplex. As primeiras fissuras na figura de Lula se deram a partir de escolhas políticas infelizes.
Falando em Obama, faltou a Lula a grandeza de se afastar do poder como fazem os presidentes norte-americanos tão logo abandonam a Casa Branca. De se exilar da vida política após a sua contribuição de quatro ou oito anos. E Lula não deveria fazê-lo apesar de ser extremamente popular, mas justamente por sê-lo. Sua popularidade desobrigou o PT e a esquerda como um todo de procurar um sucessor natural, alguém com capacidade própria de liderar políticos em torno de um projeto de governo e de país. Esse candidato, perdesse ou ganhasse a eleição, tiraria o foco de Lula. Traçaria seu próprio caminho.
Em vez disso, Lula optou por moldar a figura de Dilma Rousseff e se manter presente. Teve carisma para eleger e reeleger a sucessora, e esse foi outro erro. Dilma pode ter sido eleita por Lula, mas ainda era a presidente, e uma presidente pode ser apeada - especialmente uma, diferentemente de Lula, sem características de liderança tão necessárias para o cargo e aliada a partidos infiéis. Somando a esse cenário a incompetência da oposição de superar Lula ou o legado de Lula, deu-se o impeachment e a derrocada do seu partido, hoje um triste agrupamento de cabeças brancas amarguradas.
Fora da política, sobre apartamentos, sítios e afins, não sou procurador, advogado de defesa e muito menos juiz para sentenciar, mas me consternou, à época, uma fala de Lula repetida à exaustão em um daqueles discursos inflamados após a condução coercitiva em março de 2016. Lula se referia aos pedalinhos com os nomes dos netos em Atibaia:
- Só eu não posso?!
Exatamente, Lula. Só você é o primeiro presidente de origem popular. E, como tal, teria de ter especial cuidado com a coisa pública para evitar que qualquer problema na Justiça desse vazão ao preconceito social em forma de protesto contra a corrupção. Seu dever - o de todos, mas seu em especial - era o de ter uma índole inatacável. Pela simbologia que representa. Os processos vêm mostrando, infelizmente, que está longe disso.
A batalha de Lula, agora, é pela caneta da História. Se ficar de fora da eleição, Lula tentará emplacar a versão de um herói, de um perseguido político por ser um candidato imbatível. Para isso, grita forte para que não emplaque a outra versão, a de que ele é apenas mais um político cooptado pela corrupção que terminou na cadeia. Uma batalha entre o bronze e a carne. Ou entre o bronze e o plástico, em forma de boneco inflável flutuando no Guaíba em trajes listrados. Lembra do tal calembur (um trocadilho, um jogo de palavras) citado na fala do procurador, proferido por Napoleão ao abandonar suas tropas aos frangalhos sob a neve de Vilna: do sublime ao ridículo, é só um passo.
CAUÊ FONSECA (INERINO)
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