Fernando Gomes / Agencia RBS
Catieli morreu de um câncer de rim em janeiro de 2016, quando o filho tinha oito anos
A professora de educação infantil Catieli da Costa Silva morreu aos 30 anos, em janeiro de 2016, vítima de um câncer de rim, mas inventou uma forma de sobrevida, para estar presente em momentos decisivos da existência do filho: no luto, nos aniversários, no Natal.
Em seus últimos meses, às escondidas, dedicou-se a escrever cartas que deveriam ser abertas em datas especiais pelo menino, Matheus, hoje com 10 anos. Catieli queria fazer mais, mas conseguiu concluir cinco cartas, todas elas enfeitadas com corações de lantejoula e lacradas em envelopes coloridos. Três já foram abertas pelo filho. As duas restantes terão de esperar anos até serem lidas.

A professora contou sobre as cartas apenas à irmã, com instruções para que fossem encontradas depois de sua morte. Conforme a mãe de Catieli, Noeli da Costa, 52 anos, a razão do segredo foi a atitude dos outros familiares diante da doença.
— Quando ela dizia que ia morrer, eu e o marido dela não aceitávamos. Ficávamos contra. Dizíamos que estávamos fazendo de tudo e que ela não ia morrer. A esperança era muito grande, apesar do que os médicos dissessem. Então ela dizia para a irmã que não adiantava falar conosco. Por isso, contou só para ela.
O marido, um assistente administrativo de 37 anos que pediu para não ter o nome publicado, revela que tinha desconfianças do que a mulher andava planejando. Um dia, Catieli pediu-lhe que a levasse ao centro de Taquari, a cidade onde o casal morava, e comprou uma caixa decorada.
— Para que é isso? — quis saber.
— É coisa minha — desconversou ela.
Depois, quando estava no trabalho, ele costumava mandar mensagens para saber o que Catieli estava fazendo. Ela respondia que se ocupava escrevendo cartas. 

Ela tinha consciência da gravidade da doença. Lutou até o final, mas estava bem ciente. Acho que por isso partiu para fazer as cartas. A preocupação dela era com nosso filho.

MARIDO DE CATIELI

— Ela tinha consciência da gravidade da doença. Lutou até o final, mas estava bem ciente. Acho que por isso partiu para fazer as cartas. A preocupação dela era com nosso filho — afirma o marido.
Depois da morte, ocorrida em 8 de janeiro de 2016, o assistente administrativo abriu a caixa decorada e encontrou em seu interior as cinco cartas, organizadas na ordem em que deveriam ser abertas. A primeira delas, em um envelope azul marinho, trazia escrito em letra cursiva: "Dia da Partida". O marido conta que algumas pessoas do entorno manifestaram receio de que se deixasse Matheus lê-las, por não se saber que tipo de conteúdo teriam, mas ele estava certo de que seria uma mensagem positiva, para ajudar o menino. Um ou dois dias depois do sepultamento, entregou-lhe o envelope. Dentro havia uma folha de ofício, preenchida a caneta na frente e no verso. 
"Meu maior desejo era ser curada para cuidar de ti, mas tu vais entender que os planos de Deus são maiores e diferentes dos nossos e isso não devemos questionar. Nunca, mas nunca duvide do meu amor por você, o maior amor que pode existir", dizia o texto.

A segunda carta foi aberta sete meses depois, em agosto, no aniversário de nove anos de Matheus. Catieli felicitava o menino, desejava saúde, alegria e presentes, torcia para que houvesse brigadeiros e refrigerante na festinha, aconselhava o filho a seguir sempre o bom caminho. "Não estou presente de corpo para te dar o abraço de urso bem apertado que gostaria, mas sinta-se bem abraçado com todo o meu amor e carinho. Feliz aniversário, meu amor", concluía.
Uns meses depois, no fim de dezembro, Matheus telefonou para a avó e pediu-lhe que fossem a uma sorveteria. Era hora de abrir a terceira carta, escrita para o Natal.

Ela quis estar presente com o filho o tempo mais longo, o mais para frente possível. O que deixou escrito foi para tentar encaminhá-lo na vida

NOELI DA COSTA

Mãe de Catieli
— Quero ler a carta da minha mãe junto contigo — anunciou ele.
Na sorveteria, Noeli disse que o melhor seria ficarem em uma mesa bem no fundo, para não chamarem atenção caso tivessem vontade de chorar. 
— Não, vó. Vamos comer o sorvete e depois vamos para a tua casa, para ler — decidiu o menino.
Assim foi feito. Matheus rasgou o envelope, fez a leitura sem perder a serenidade e repassou o papel para a avó. "Neste Natal talvez você sinta falta do abraço da mãe, mas como já comentei nas outras cartas, eu estou e estarei sempre contigo, te cuidando e protegendo, este é o meu desejo. E a apresentação de Natal na escola? É sempre tão bonita e emocionante! Espero que não fique tímido nas apresentações, não se deve ter vergonha de fazer as coisas boas e bonitas!". Ao ler essas palavras, Noeli verteu lágrimas.
—  Para, vó! Meu vô já vai vir e vai ficar nervoso se te vê chorar — pediu o garoto.
Matheus é descrito como um menino reservado e não costuma falar sobre a correspondência póstuma. Mas a avó e o pai estão convencidos de que as mensagens deixadas por Catieli tiveram um efeito positivo sobre ele.
— Acho que dá força para ele. A atitude dela é um exemplo. Ela quis estar presente com o filho o tempo mais longo, o mais para frente possível. O que deixou escrito foi para tentar encaminhá-lo na vida — interpreta o pai.
Catieli recebeu o diagnóstico em outubro de 2014. Agressiva, a doença já havia atingido outros órgãos. Ao longo de 2015, entregou-se aos tratamentos disponíveis. Até fosfoetanolamina a família obteve, na Justiça. Mas as perspectivas eram sombrias, e Catieli tratou de preparar-se. Além das cinco cartas escritas, ela havia começado outras. Noeli encontrou as folhas, já decoradas com o coração de lantejoulas. Mas a enfermidade atingiu a visão da jovem, e ela já não teve como escrever.
Tempos depois da morte, Noeli contou sobre as cartas ao oncologista da filha, Hugo Schunemann, que ficou impressionado, tirou cópias e repassou-as ao colunista de ZH David Coimbra, responsável por tornar pública a história na semana que passou. A família não quer aparecer, mas concordou com a divulgação, porque entende que a iniciativa de Catieli merece ser conhecida.
A caixa com as cartas é mantida no quarto de Matheus. Lá dentro estão as três correspondências abertas e as duas ainda fechadas. A de envelope amarelo orienta: "14 anos". A azul traz uma única palavra do lado de fora: "formatura".

AS CARTAS

Dia da partida


Fernando Gomes / Agencia RBS
"Meu querido filho Matheus.
Posso imaginar que hoje é um dia muito triste, mas quero que saibas que sou muito feliz pela oportunidade de ter sido tua mãezinha!
Peço que não fiques triste com Deus, e reze como te ensinei, pois cada vez que dobrar os joelhos mais perto estaremos.
Decidi escrever essas cartas pra você para estender um pouco mais o nosso tempo. As cartas são tuas, você pode fazer o que quiser com elas. Podes guardar, mostrar para quem quiser, mas caso elas te tragam tristeza você não precisa ler. Não é minha intenção te deixar triste, muito pelo contrário, quero que te sirva de consolo pela minha ausência. Meu maior desejo era ser curada para cuidar de ti, mas tu vais entender que os planos de Deus são maiores e diferentes dos nossos e isso não devemos questionar. Nunca, mas nunca duvide do meu amor por você, o maior amor que pode existir. Filho, escute sempre os conselhos do teu pai. Assim como eu, ele só quer o teu bem, e ele é um grande homem, quero que tu te espelhes nele, seja trabalhador e do bem como ele, sendo assim poderei ficar tranquila, tendo a certeza de que andarás no caminho do bem, e é isso que eu desejo pra ti!
Te amo muito".

Aniversário de nove anos


Fernando Gomes / Agencia RBS
Segunda carta deixada para o filho: "Que alegria, meu amor, comemorar os teus 9 anos"
"Meu querido filho Matheus...
... Parabéns, hoje é o teu dia....
Que alegria, meu amor, comemorar teus 9 anos! Me lembro como se fosse hoje o meu aniversário de 9 anos! Que idade linda. Quero, neste dia, desejar pra você muita, muita saúde! E muitas alegrias. Também espero que ganhe presentes, porque é muito bom, eu adoro!
Para mim sempre foi uma alegria programar tuas festas de aniversário, mas tenho certeza que teu pai fez isso muito bem. E que não falte brigadeiros e refrigerantes, he he he!
Filho tenho certeza que tu está te saindo bem na escola, capriche sempre, você é muito inteligente e muito capaz! Um grande orgulho para todos nós. Mas não esqueça de trilhar o bom caminho sempre, é só querer! Eu confio muito em ti e estou aqui escrevendo esta carta com o coração tranquilo, pois conheço muito bem teu coração e sei o quanto ele é bom e amoroso!
Não estou presente de corpo para te dar o abraço de urso bem apertado que gostaria, mas sinta-se bem abraçado com todo o meu amor e carinho.

Feliz aniversário, meu amor".

Natal


Fernando Gomes / Agencia RBS
Terceira carta deixada ao garoto: "Não importa, meu filho, o quanto a vida possa te parecer dura e injusta. nunca perca a alegria e a vontade de viver
"Meu querido filho Matheus!
Hoje é Natal, onde nossas esperanças se renovam. Espero que vocês tenham decorado a casa como sempre fizemos, para que fique bem bonita para celebrar o nascimento de Jesus.
Sabe que não tem sido muito fácil escrever essas cartas a longo prazo, já que na verdade não tenho como prever se estarei aqui com você ou não. Quero que saibas que estou fazendo isso com muito amor, para o grande amor da minha vida.
Quero te pedir que não importa, meu filho, o quanto a vida possa te parecer dura e injusta. Nunca perca a alegria e a vontade de viver. Seja sempre grato a Deus pelas coisas e pessoas especiais que ele colocou no teu caminho. Agradeça sempre, e lembre-se que Deus é bom o tempo todo.
Neste Natal talvez você sinta falta do abraço da mãe, mas como já comentei nas outras cartas, eu estou e estarei sempre contigo, te cuidando e protegendo, este é o meu desejo. E a apresentação de Natal na escola? É sempre tão bonita e emocionante! Espero que não fique tímido nas apresentações, não se deve ter vergonha de fazer as coisas boas e bonitas!
Feliz Natal meu amor!"