15 DE JANEIRO DE 2018
L.F. VERISSIMO
Cara de bebê
Dizem que todos os bebês do mundo nascem com a cara do Winston Churchill. A cara de bebê garantiu a Churchill uma simpatia nem sempre merecida, por toda a sua vida. Antes de ser o herói da resistência a Hitler na II Guerra Mundial, Churchill foi um típico servidor do que o Império Britânico tinha de mais retrógrado e arrogante e um apologista do uso de gás venenoso contra seus inimigos, incluindo nativos revoltados nas suas colônias. Churchill nunca mudou, mudou a sua circunstância. Hitler e a ameaça alemã providenciaram seu encontro com a História, a História criou o mito e o mito liquidou a biografia pouco enternecedora do cara de bebê até então.
Nem os historiadores mais revisionistas discutem que foi Churchill, com sua liderança e, principalmente, sua retórica, que salvou a Inglaterra na II Guerra. No caso de Churchill, não cabe nem desenterrar a velha questão da importância relativa de homens que fazem a História e da História que produz os heróis necessários. Não há dúvida de que Churchill inspirou a nação com a cadência dramática das suas falas, prometendo combater os alemães de rua em rua, no caso de invasão, e resistir aos ataques aéreos que castigavam Londres diariamente.
Valeu-se de outro mito, o da Inglaterra como uma ilha abençoada, descrita assim por Shakespeare (quem mais?) num solilóquio da sua peça Ricardo II: "Esta terra majestosa", "Este outro Éden, semiparaíso", "Esta fortaleza construída para ela pela Natureza", "Esta feliz raça de homens, este pequeno mundo". Quem Hitler pensava que era, atacando este outro Éden?
Pequeno parêntese: o solilóquio de Shakespeare, uma lista de tudo o que faz da Inglaterra um refúgio num mundo imperfeito, é dito por um nobre agonizante desencantado, pois descreve o que a Inglaterra já foi mas não é mais. O que não impediu que o texto fosse sempre repetido como um rol de virtudes inglesas, omitida a última estrofe, que revela o desencanto do nobre.
Churchill foi endeusado como o salvador da pátria, com razão, mas os eleitores ingleses decidiram rebaixá-lo, de fazedor de História a herói necessário, no fim da guerra. Despacharam-no. Não se sabe se saiu de Downing Street desencantado.
L.F. VERISSIMO
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