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terça-feira, 6 de julho de 2010
JOÃO PEREIRA COUTINHO
O futebol não é um jogo
No Ocidente pós-moderno, onde a religião e o Estado recuaram na sua força, o futebol preencheu o vazio
PELA PRIMEIRA vez na vida, vou discordar de Theodore Dalrymple. O dr. Dalrymple, pseudônimo do médico britânico Anthony Daniels, é um dos mais brilhantes ensaístas vivos. Discordar da sua sabedoria, sempre intocável, é exercício atrevido. Arrisco na mesma.
Escreveu o dr. Dalrymple, em artigo para a "New English Review", que não consegue suprimir o seu desprezo pelo futebol. Como é possível que países alegadamente ilustrados possam dedicar a um jogo todas as energias da nação?
Como é possível que a França possa reunir "comissões parlamentares de inquérito" para analisar o que sucedeu de errado com a sua seleção? Será que as pessoas não reparam na vulgaridade e, pior, na inutilidade de transformar um mero jogo em que algo que ele não é?
Futebol é futebol, diz o dr. Dalrymple. A paixão mundial por ele é sintoma da nossa decadência presente, mental e cultural.
Com a devida vênia, discordo. Futebol não é apenas futebol. Descontando a dimensão financeira e mediática avassaladoras, que sacode o globo inteiro, o jogo tem importância política e até existencial que é impossível não ver.
Politicamente, alguém deveria enviar ao dr. Dalrymple a primeira página desta Folha de domingo: o goleiro da Argentina, de costas e de quatro. E o título, generoso e a negro: "Massacre histórico". Olé!
Imagino o prazer que os editores do jornal tiveram ao planear essa primeira página. E imagino o prazer que os brasileiros tiveram ao lê-la. Melhor, só mesmo se tivesse sido o Brasil a fazer o serviço.
E quem diz o Brasil diz Portugal ante a Espanha. A equipe lusitana perdeu com "sus hermanos" uma semana atrás. Mas perder contra Espanha não é o mesmo que perder contra a Alemanha, contra a Argentina ou mesmo contra o Brasil.
Perder contra Espanha desperta todos os fantasmas históricos de um país que, em rigor, sempre afirmou a sua identidade por oposição a Castela. E que sempre viu em Castela uma ameaça física (no passado) ou econômica (no presente).
Hoje, Portugal e Espanha são membros da União Europeia e parceiros comerciais relevantes. Mas bastaria ler a imprensa portuguesa antes do jogo para perguntar se os jornais desportivos se tinham convertido à erudição acadêmica: as referências a batalhas importantes entre os dois países eram tantas que o leitor médio precisaria de um Ph.D. em história medieval para compreendê-las a todas.
Apenas um jogo? Para os portugueses, defrontar a Espanha era uma nova Batalha de Aljubarrota. Serem derrotados pela Espanha, uma repetição de 1580, quando o país perdeu a independência para os vizinhos. Todos os portugueses esperam agora pela desforra. Esperam por um novo jogo, uma nova Restauração, um novo 1640.
A União Europeia fez-se para harmonizar os interesses das nações do continente e, quem sabe, diluir as velhas identidades nacionais num único projeto federal.
Mas essas identidades existem e persistem quando Portugal encontra Espanha; quando a França encontra a Alemanha; quando a Irlanda encontra a Inglaterra; quando a Polônia encontra a Rússia. O futebol é a válvula de escape para que os países, formalmente unidos em Bruxelas, possam libertar medos ou ressentimentos que o tempo armazenou no subconsciente histórico.
Mas não apenas no subconsciente histórico. Disse que o futebol tem importância política e existencial. E essa última dimensão encontra-se no torcedor anônimo, que festeja e chora o destino da equipe como se fosse o seu próprio destino.
De certa forma, ele tem razão: o torcedor de futebol não deseja apenas contemplar a beleza do jogo e divertir-se em 90 minutos. O torcedor projetou na equipe exigências pessoais que não podem ser frustradas. Ele anseia por ordem, força, criatividade, disciplina, vontade ganhadora; ele exige o que seria incapaz de exigir a si próprio. Porque não pode, ou não quer.
O futebol não é apenas um jogo. No Ocidente global e pós-moderno, onde a religião e mesmo o Estado-nação foram recuando na sua força vital, o futebol preencheu esse vazio, congregando novos fiéis com um novo sentimento de pertença.
E com uma nova narrativa. Uma narrativa pulsional e tribal, feita de confrontos maniqueístas, sofrimentos coletivos e a possibilidade de uma redenção final e mundana.
jpcoutinho@folha.com.br
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