sábado, 10 de julho de 2010



10 de julho de 2010 | N° 16392
CLÁUDIA LAITANO


O faroeste e a marchinha

No faroeste O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford, há uma cena decisiva de duelo em que três homens medem suas forças. James Stewart, na pele do advogado Ransom Stoddard, representa a crença na lei e no contrato social que torna a civilização possível. Lee Marvin, o facínora Liberty Valance, encarna a força bruta e sem limites que submete a pequena cidade de Shinbone à lógica perversa do manda-mais-quem-pode-mais – e quem atira mais rápido.

O terceiro vértice cabe a John Wayne, como o herói que tem a coragem e a destreza para enfrentar o bandido, mas está mais interessado em defender a própria pele e a das pessoas próximas do que a cidade inteira.

No começo do filme, o bando de Liberty Valance assalta a carruagem em que Ransom Stoddard viaja com uma velha viúva. Quando o bandido ataca sua acompanhante, o jovem advogado sai em sua defesa. “Que espécie de homem é você?”, pergunta James Stewart, espantado com a brutalidade do agressor. Lee Marvin devolve a pergunta, sugerindo que o tipo esquisito ali é quem, em pleno Velho Oeste, anda armado apenas com seus livros de Direito.

Como boa parte dos filmes de John Ford, O Homem que Matou o Facínora encerra um pequeno tratado sociológico sobre a formação dos Estados Unidos. É provável que os descendentes de índios não aprovem muito a versão da História que o diretor privilegia, mas toda a revisão histórica que se fez de sua obra não foi capaz de negar seu talento como cineasta.

O Homem que Matou o Facínora é o meu favorito por vários motivos, mas há uma pequena cena que vale por toda a mitologia do Velho Oeste como o cenário em que a civilização e os instintos mais primitivos se enfrentam.

O homem que acredita na justiça e prefere não andar armado improvisa uma pequena sala de aula para ensinar adultos e crianças não apenas a ler e escrever, mas também a conhecer sua História e os princípios que fundaram o país. Sem educação, a cidade estaria condenada a ficar à mercê de heróis e bandidos. Para a democracia sobreviver, sugere o filme, não basta Congresso: é preciso sala de aula.

Acho que não abuso muito do raciocínio se disser que em determinada época as marchinhas ocuparam no imaginário brasileiro um espaço parecido com que o cinema ocupou nos Estados Unidos. Muito populares dos anos 20 aos 60, as marchinhas de Carnaval oferecem um retrato irreverente da alma nacional.

Ouvindo a letra de uma marchinha, a gente descobre não apenas as gírias que a nossa avó usava, mas também um horizonte mais amplo de convicções, costumes, preconceitos e tendências políticas.

Se existe sociologia no cinema americano, ela também está na marchinha brasileira. Não sei se há alguma que celebre o giz e o quadro-negro, mas tem uma, Se Eu Fosse Getúlio, sucesso no Carnaval de 1954, que sugere o que o brasileiro médio dos anos 50 pensava sobre educação: “O Brasil tem muito doutor/ Muito funcionário, muita professora/ Se eu fosse o Getúlio/ Mandava metade dessa gente pra lavoura”.

Mais de 120 anos se passaram desde a época do Velho Oeste, e boa parte desse tempo o Brasil desperdiçou acreditando que doutores e professores não faziam falta. As consequências dessa escolha podem nos apanhar a qualquer momento, em qualquer esquina, sempre que um facínora topar com um homem comum – e não houver nem xerife nem John Wayne por perto para o defender.

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