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terça-feira, 27 de julho de 2010
27 de julho de 2010 | N° 16409
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Tarde de chuva
Tínhamos combinado um piquenique na beira do rio, mas o domingo amanheceu gris. O céu era toda uma nuvem compacta e ameaçadora, de modo que Isabela sugeriu que nos encontrássemos à tarde, em sua casa, que ficava nas Três Paineiras. Quem conhece a cidade de Santaclara sabe que as Três Paineiras em verdade são quatro e que em nenhum lugar do universo chove tanto como ali.
Chovia quando cheguei na casa de Isabela e continuava a chover quando a deixei, perto das sete da noite para tomar o ônibus rumo a Porto Alegre. Isabela morava com uma tia que era tão simpática que só me dizia como vai? e até logo. Todo o resto do tempo era de propriedade exclusiva minha e de Isabela, na mais doce solidão do mundo.
É claro que com toda aquela chuva só havia uma coisa a fazer. E foi ao que eu e Isabela nos dedicamos, caladas todas as palavras avulsas. Nós nos beijamos e nos acariciamos em uma sensualidade íntima e sideral, de que hoje só recordo pelo trajeto de minhas mãos em seus seios e em suas pernas decoradas por uma fina, suave penugem dourada.
Mentira: lembro também de que evoquei, no clímax de nosso abraço, se é que de algo se possa relembrar desses momentos, de um trecho de verso de Cecília Meireles: “A chuva é a música de um poema de Verlaine.”
Já eram quase sete horas e eu devia tomar o ônibus. Abracei Isabela, falei até logo para a sua tia e saí pelo rumo do que agora era uma tempestade. Corri, encharcado, até a Estação Rodoviária, que era então um prédio simples e abarrotado.
Nada disso era muito romântico, mas eu trazia comigo a memória de cada instante daquela tarde. Sentei-me no ônibus ao lado de um figurão de Santaclara, um sujeito que cultivava especial apreço pelo som da própria voz.
Eu o ouvi distraído, respondendo-lhe a intervalos, conforme ditava o tom de minha educação. Mas meu ser inteiro jazia na chuva, tanto a que caía enquanto eu me entregava à ternura de Isabela, quanto a que me acompanhava, torrencial, até aquele ônibus.
Nunca mais vi Isabela. Nunca mais a revi, entregue e deliciada, a mim, numa tarde de chuva. Hoje será, talvez, toda uma senhora. Eu sou todo um senhor e minha única fortuna é a reinvenção do tempo que se foi.
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