segunda-feira, 5 de julho de 2010



05 de julho de 2010 | N° 16387
LUIZ ANTÔNIO ARAUJO


Vida natural

Vai um homem a cavalo pelo interior de Torres. Trabalha para a Comissão Rockfeller, órgão do governo americano destinado a promover a saúde na zona rural, onde vive a maioria dos brasileiros naquele início de século 20. O viajante não é médico nem enfermeiro, mas por força do ofício leva na bagagem um microscópio e remédios contra vermes.

De passagem por uma venda de beira de estrada, o cavaleiro assiste a uma briga. São muitos os motivos pelos quais se mata e morre em briga de bolicho – vingança, dívida, jogo, mulher –, mas a cena final é, invariavelmente, a que o viajante tem diante de si: um homem agoniza no chão de terra, o abdome aberto num talho, vísceras derramadas. Há correria, gritos e choro.

Incapaz de prestar atendimento adequado, a muitas horas de viagem do médico mais próximo, o recém-chegado decide fazer um último favor à vítima e aos familiares que em breve irão enterrá-la.

Limpa o ferimento com água e creolina, recoloca as vísceras na cavidade e costura o talho com agulha e linha fornecidas pela dona da venda. Tempos depois, de passagem pelo lugar, pergunta pelo morto a um homem que fuma na porta do bolicho. O nativo olha-o e diz:

– O morto sou eu!

Acabo de ler essa história no livro Abrindo a Porteira, no qual o engenheiro agrônomo Zacheu Canellas narra mais de 40 anos de atividade extensionista no campo gaúcho. O homem a cavalo era seu pai. Exímio contador de causos, Zacheu assinala que o socorro na hora certa, com os meios disponíveis e uma dose de sorte, pode salvar vidas.

Ao ouvir o médico Denis Mukwege, que esteve em Porto Alegre na semana passada como convidado do ciclo Fronteiras do Pensamento, pensei na história de Zacheu. O relato de Mukwege sobre seu país, a República Democrática do Congo, deixa os que o ouvem com a respiração suspensa. Ele conta que, antes da independência, o rei Leopoldo II, da Bélgica, punia com o corte da mão os congoleses que não coletassem determinada quantidade de látex.

Diz que o conflito atual no país, que já dura 10 anos, não é por poder ou religião, mas pelo controle de lucrativas minas de coltan e cassiterita. Lembra que o continente africano recebe 1% dos recursos mundiais de saúde, mas suporta as maiores taxas de mortalidade. Informa ter ouvido de um colega americano que o custo de uma cirurgia nos Estados Unidos poderia sustentar um hospital de 450 leitos por um mês na África.

Um dos saldos da passagem de Mukwege pelo Brasil é que a UFRGS alinhava um projeto de colaboração na área da saúde com instituições congolesas. É uma iniciativa quase simbólica. A universidade segue o mandamento do viajante de Torres: agir com os recursos à mão.

Esperar pelos governos ou por eventuais “pais dos pobres”, nesse caso, pode caracterizar omissão de socorro. Em tempos de vida artificial e second life, nada mais salutar do que impedir que seres humanos pereçam.

Luiz Antônio Araujo substitui Luis Fernando Verissimo, que até 12 de julho tem sua crônica publicada no Jornal da Copa

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