sábado, 12 de janeiro de 2008



O jeito que Sandrinha lavava roupa

O lance é que a Sandra gostava de lavar roupa só de calcinha. Sandra, Sandrinha. Loira, não muito grande. Mas também não servia para miúda; não, miúda não era. Coxas fortes, isso se podia dizer de Sandrinha.

As coxas eram um predicado seu. Quanto às nádegas, redondas, cada gomo um hemisfério de bola de futsal. Corpo bem proporcionado tinha Sandrinha, seios pequenos, naquela época era moda seio pequeno.

Para arrematar, uma aragem de malícia lhe envolvia o rosto harmonioso. Uma aragem superior. A gente sabia por que: Sandrinha... transava! As mulheres não transavam, naquele tempo. Não as que conhecíamos. Já Sandrinha transava. Infelizmente, não com nenhum de nós. Com os caras mais velhos. Três ou quatro deles se reuniam, e logo a Sandrinha desabava no meio da conversa.

Ouvia-se: a Sandrinha, a Sandrinha... Falavam dela com risos maliciosos e frases pela metade, falavam com lasciva satisfação, fazendo-nos, a nós, os bacuris, os pirralhos, os bostinhas, sonhar.

Nós éramos muito coesos, os bostinhas. Um time. Andávamos juntos e jogávamos juntos. Juntos, íamos ver Sandrinha lavar roupa.

Ela morava um andar abaixo do apê do ala esquerda. A área de serviço dela dava para o centro do prédio, para o poço de luz. Da janela do quarto do ala, a vista era perfeita.

Então, na hora da lavação de roupa, nos amontoávamos no quarto, ficávamos espiando pelas frestas da veneziana, na maior excitação. O brabo era descobrir o horário da lavação. O ala ficava de campana em casa. De repente, descia correndo até a porta do edifício e gritava a senha:

- Saponáceo!!!

Era aquela correria, a gurizada subindo as escadarias de três em três degraus. Depois, mó disputa para olhar pelas frestas da janela. Não havia lugar para todo mundo, dava uma agonia, agora eu, agora eu!

Sandrinha lá, só de calcinha. Uma calcinha bem pequeninha. E Hawaianas. Porque lavava só de calcinha, ninguém nunca descobriu. Mas lavava, e lavava com vigor, cantarolando. E nós: que gostoooosa!

O mais entusiasmado, o fã número 1 da Sandrinha, era o Fernando, eterno reserva do time. O cara chegava a saltitar de emoção, atrás da janela.

Só que nunca deixávamos que visse a Sandrinha por muito tempo. Era um reserva, reserva tinha de esperar. Pior que reserva, e aí está o busílis, é o seguinte: o Fernando era virgem.

Não que algum de nós fosse muito menos virgem, mas o Fernando era o mais virgem, se é que isso é possível. Nós outros tínhamos, cada um, pelo menos uma experiência. Uminha. Geralmente mal-enjorcada e rápida, mas pelo menos havia algo a se contar. O Fernando, nada. Vivia se lamuriando:

- Quando é que vou perder a virgindade? Quando, meu Deus???

Foi aí que concebemos um plano: por que ele não pedia ajuda a Sandrinha? Por que não pedia que ela, tão dadivosa, resolvesse o seu problema? Bastava pedir, Fernando, bastava expor-lhe o drama, vai, Fernando.

Tratava-se de dupla maldade, evidentemente. Em primeiro lugar, preconceituosos, derramávamos nossa frustração em cima da mulher que nós desejávamos, mas que sequer nos olhava e, se nos olhasse, não nos veria.

Em segundo, de alguma forma demonstrávamos que havia uma casta inferior à nossa, que havia um ser ainda mais infame: Fernando, o virgem absoluto, o terceiro reserva do time, o objeto de galhofa da turma.

Passávamos os dias insistindo:

- Pede a ela, Fernando. Fala da tua virgindade. Desabafa. Ela vai topar.

O Fernando começou a se convencer de que talvez tivéssemos razão. Tratava-se de um crédulo, de uma pessoa que confiava nas outras pessoas. De um bom sujeito, enfim. Um dia, anunciou:

- Eu vou! Vou pedir a ela!

A notícia eletrizou a turma. Ficamos imaginando a cena, o fiasco, o escândalo. Ele seria espancado, decerto. Seria enxotado pela Sandrinha. O Fernando marcou até a hora: no fim da tarde, Sandrinha sempre descia para dar uma banda, fumar um Minister e talicoisa. Nessa hora, o Fernando a abordaria, relataria o seu drama e lhe imploraria por seus favores.

Na hora da descida da Sandrinha, estávamos excitados. Até os caras mais velhos sabiam da intenção do Fernando e ficaram na expectativa. O bairro inteiro estava na expectativa. Talvez a cidade inteira!

Bom.

Às seis da tarde, mais ou menos, Sandrinha desceu. Encostou o ombro no vão da porta do edifício, sacou um cigarro e ficou soprando fumaça azul para o alto, distraída. Vestia um calçãozinho branco, uma blusinha azul-marinho e Bamba branco. O Fernando olhou para ela e como que ficou petrificado. Nós:

- Vai lá! Vai lá! Os caras mais velhos: - Vai lá! Vai lá! Os vizinhos: - Vai!

Todos queriam zombar do Fernando. E da Sandrinha, por vias nem tão indiretas assim. O Fernando era boa pessoa mesmo, achava que todos queriam o seu bem. Respirou fundo, emitiu um suspiro doído, e foi. Ninguém acreditava que teria coragem, mas ele foi.

Enquanto se dirigia, meio vacilante, para o local onde Sandrinha fumava, ela, ladina, percebeu que havia algo estranho no ar. Não parecia mais relaxada. Ao contrário: estava ereta, atenta, farejando a maldade no ambiente. Os poucos metros que o Fernando venceu para chegar até ela, via-se que os percorreu com sofrimento. Com dor.

Parou diante dela. Ela olhou para ele, muito séria, e em seguida olhou para nós, olhou para a turma dos caras mais velhos, olhou para tudo no entorno.

O Fernando começou a falar. Ela olhava para ele e dele olhava para nós, olhava para ele e olhava para os caras mais velhos. Finalmente, ficou olhando só para ele, ouvindo-o, o Fernando tímido, deste tamainho, se tivesse um chapéu nas mãos, estaria rodando-o e amassando-o.

Sandrinha ouviu o Fernando, ouviu, ouviu. Nós, rindo, esperávamos que ela o esbofeteasse, que o expulsasse dali, que gritasse com ele. Mas ela não dava mostras de estar nervosa, nem ofendida.

Ele terminou de falar, ficou de cabeça baixa, fitando a ponta dos guids. Sandrinha deu uma última baforada no Minister. Atirou a bagana no meio da rua. Ergueu o queixo. Olhou uma última vez para todos nós, ali em volta.

E, a seguir, tomou o Fernando pela mão e sumiu com ele prédio adentro. Ficamos, nós, os caras mais velhos, os vizinhos, todo mundo, ficamos abestalhados no meio da rua.

Passados dois minutos, corremos até o corredor, imaginando que ela e o Fernando estivessem em algum canto, rindo de nós.

Não estavam. Sandrinha o levara para o apartamento dela. O Fernando só saiu de lá tarde da noite. Quem o viu, disse que sorria, sorria sempre, sorria sem parar.

Fernando nunca contou o que aconteceu durante aquelas horas. Nunca descobrimos o que se passou entre ele e a Sandrinha. Mas, depois daquele dia, a vida dele mudou: ele nunca mais subiu para vê-la lavando a roupa, e ele nunca mais ficou na reserva.

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