O cego meticuloso / The End em Dolby Stereo
Miguel era cego de nascença. Nunca viu nada, nada mesmo, além da escuridão absoluta, infinita e ignorada. Porém, como tantos outros cegos, de nascença ou não, aprendeu a potencializar os quatro sentidos restantes: ouvia como um tuberculoso; tinha o faro mais apurado do que os perdigueiros da Scotland Yard;
seu paladar conseguia diferenciar, num simples estalo de língua, a pétala de uma rosa vermelha, da pétala de uma rosa amarela; o tato era de tal forma sensível, que ele perceberia, instantaneamente, se um mosquito pousasse em seus cabelos castanhos.
Meticuloso ao extremo, desde criança aprendera a catalogar mentalmente os sons, os cheiros, os gostos e as sensações tácteis. Sua mente abrigava um vasto arquivo de percepções, organizado com rígida disciplina, em pequenos nichos da memória, cada qual devidamente classificado por assunto e época.
Mesmo prisioneiro da escuridão, Miguel adorava ir ao cinema. Ia para ouvir os diálogos dos atores, para exercitar seu inglês, deliciar-se com as belas músicas em Dolby Stereo e encantar-se com as sutilezas da sonoplastia incidental. Filmes eram a sua maior paixão; paixão e vício.
Como a posição da grande tela não lhe importasse em nada, Miguel sempre procurava tomar um dos assentos centrais, na primeira fileira de poltronas. Quase nunca percebia outra pessoa a ocupar a primeira fileira.
Todos detestavam aqueles lugares tão a frente, o que não deixava de ser uma bênção... A primeira fila era, pois, toda sua. E assim o fez, também naquela quarta-feira, na sessão das 21h30, em um pequeno cinema de shopping. O filme em cartaz era um comentado musical, tendo como tema aquele cabaré francês, aquele tal Moulin Rouge.
A projeção já começara há bem uns quinze minutos, quando Miguel sentiu a leve trepidação na poltrona, indício de que alguém se aproximava; soube dessa chegada também pelo cheiro suave do perfume, quase imperceptível, fragrância que parecia conter, predominantemente, o aroma fresco de uma laranja quase madura e um toquezinho de almíscar, um quase nada.
A pessoa, fosse quem fosse, sentou-se na poltrona ao lado da sua. “Por que justamente aqui”, pensou Miguel, “se a sala está praticamente vazia?” Contudo, nada fez. Poderia mudar de lugar, mas seria um pouco ridículo. Permaneceu ali, tentando concentrar toda a atenção na trilha sonora do filme.
Aos poucos o calor daquele corpo avizinhado começou a aquecer o braço direito do cego. Em seguida, a quentura irradiou-se para baixo, incendiando-lhe a coxa direita, e a panturrilha, e o tornozelo, e o pé... provocando uma agradável lassidão nos músculos, distendendo nervos, tendões... Ah, que calor prazeroso... talvez ampliado por vir daquele modo, misturado ao perfume suave de fruta cítrica levemente almiscarada.
Miguel começou a prestar mais atenção ao som da respiração tão próxima... uma respiração profunda... nem calma demais, nem nervosa, respiração de quem está atento à alguma coisa especial, a algo que esteja para acontecer a qualquer momento... Ou melhor, algo que irá certamente acontecer...
Miguel pousou a mão direita na coxa e, não se passaram sequer trinta segundos, sentiu o toque suave de outra mão, o contato delicado de um dedo mínimo em seu dedo mínimo... algo que poderia parecer incidental, inocente, infantil, mas obviamente não era. O primeiro impulso de Miguel foi retirar imediatamente a mão, levantar-se e mudar de assento.
Mas não fez nada disso, simplesmente não conseguiu; estava paralisado num encantamento. Apenas deixou-se ficar, aprofundando-se cada vez mais no desconhecido, como um navio que submerge aos poucos, bem aos poucos, perigosamente...
Aquela mão virou-se em concha, muito quente, receptiva, e Miguel tocou-a com sua mão um pouco fria, os dedos longos vazando nos desvãos dos outros dedos, buscando sentir a firmeza dos pequenos ossos e a maciez sensual das carnes rasas.
A sua respiração acelerou-se, seguindo a outra respiração. O seu coração saltou, seguindo o batuque surdo do outro coração... O corpo do cego afundou-se um pouco mais na poltrona, desceu, vencido, subjugado, adernando magneticamente para a direita, buscando contato, indo a pique, liberto de todos os pudores...
Nas dobras da sua orelha, o cego sentiu dois beijos breves, que soaram dentro do seu ouvido como o rumor das asas de um pombo a resvalar num beiral de pedra. Aqueles lábios deixaram alguma umidade no lóbulo... Miguel arrepiou-se todo, virou o rosto procurando intintivamente oferecer a boca para um beijo mais pleno...
Não houve outro beijo, mas a mão atrevida puxou o ziper de sua calça e meteu-se naquele fogaréu de carnes, onde seu eixo pulsava em desespero, e um riozinho de mel, lentamente escorria, empapando pêlos e panos, untando a cremalheira dourada, no reverso do ziper...
Miguel pensou que ia morrer, tão rapidamente naufragava em espasmos involuntários, em calafrios glaciais, calores de braseiro vivo, ardores, prazeres e dores bem-vindos, abismos se desdobrando em novos abismos, cada vez mais profundos, mais negros, o cheiro da terra molhada, subindo, depois das chuvas, o cheiro da crina de um cavalo bravo, da calda de açúcar represada no regaço de um pudim, o perfume noturno das floradas nos limoeiros, o cheiro seco de areias escaldantes, o odor animal, indefinível, do leite grosso, morno, derramado sobre a pele...
Quando Miguel voltou a si, estava sozinho outra vez. Ajeitou-se como pôde, passou a mão nos cabelos despenteados... colheu uma lágrima no canto do olho esquerdo, levou-a à língua, experimentou o sal, catalogou sabor e sensação, meticulosamente... para jamais se esquecer daquela experiência única, que talvez nunca mais se repetisse.
No entanto, logo na noite seguinte, o cego retornou ao mesmo cinema, pagou seu ingresso da sessão das 21h30 e caminhou, cheio de esperança, para a primeira fileira de poltronas.
Sentou-se, ansioso, mas feliz; a poltrona ao lado não estava vazia. Meticuloso como era... só pode ter sido a ansiedade, aquela excitação crescente, que o distraiu... caso contrário, ele teria percebido o cheiro metálico da lâmina do estilete.
Do caderno mágico do Denis
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