sábado, 18 de outubro de 2008



19 de outubro de 2008
N° 15763 - PAULO SANT’ANA


O enterro a que não fui

Nunca entendi um hábito meu quando vou a velórios: sempre descubro o rosto dos defuntos, coberto com aquele lenço com que costumam tapá-lo.

E quando o defunto ou defunta me tocou na vida, sempre dou-lhe um beijo na face.

E sempre tive um estranho fascínio pelos defuntos. Não sei que mistério faz com que aquela pessoa que passou tão marcantemente pela nossa vida pode agora estar ali tão inerte, tão sem resposta, tão para sempre ausente, tão perpetuamente distante.

Sempre que posso vou a velórios e a enterros. Vou mais pelos defuntos do pelos seus familiares e amigos. Porque me passa pela minha cabeça que não vá ninguém no meu enterro, que apareçam poucos gatos pingados.

E como tenho a impressão de que estarei presente no meu enterro, isto é, espiritualmente estarei vendo tudo que acontece naquela câmara mortuária, ficaria amassado como defunto se houvesse pouco público na minha partida.

Então eu vou aos enterros na esperança de que os defuntos que estão sendo velados estejam de alguma forma por lá, em espírito, cobrando a presença de todos os seus amigos.

Então vou aos enterros e aos velórios para não ser cobrado pelos defuntos: que graça tem tê-los acompanhado por toda a vida e não comparecer junto a eles exatamente em data tão importante, o dia da sua morte.

Sei agora por que estou falando sobre esse assunto. É que me ocorreu ontem que inconscientemente vou a enterros para compensar o fato de não ter comparecido ao mais importante enterro de minha vida: o de minha mãe.

Eu tinha apenas dois anos quando ela faleceu. E devem minhas tias e meu pai ter ficado apiedados de mim e me poupado da cena de ver minha mãe estendida num caixão no velório ou sendo sepultada.

Não tenho nenhuma lembrança da morte de minha mãe, assim como não guardo nenhuma lembrança da visão dela.

Para onde me levaram quando minha mãe estava sendo velada e enterrada? Quem ficou comigo e também não compareceu às cerimônias de despedidas? O que deve ter pensado aquela pessoa que me estava guardando e me protegendo da imagem fúnebre de minha mãe?

Certamente o coração dessa pessoa que me guardava ficou penalizado com a situação daquele menininho de dois anos que tinha uma vida inteira pela frente para vivê-la pela metade, isto é, sem sua mãe.

Quem preencheria aquele terrível vazio que ameaçava agora aquela criança? De que jeito aquele menininho iria criar-se, estudar, formar-se, ganhar a vida, se faltara-lhe no momento mais tenro de sua infância a companhia angélica de sua mãe?

E eu, em que pensava naqueles instantes em que a alma de minha mãe subia aos céus num carro de glórias?

Como pode a vida reservar a uma criança um destino assim tão aterrador.

Só eu sei o que passei e o que passo até hoje por não ter tido mãe. Só eu sei dos medos, tenebrosos medos, que tive, das inseguranças que me possuíram, das crises frias de solidão que atravessei, sólidas e intransponíveis orfandades que se acometeram sobre mim em tantas passagens dramáticas desse meu percurso pela vida sem a ajuda e a vigilância de minha mãe.

Olhem, foram e continuam sendo tão grandes os meus traumas na vida que penso agora que deviam ter deixado eu ir ao enterro de minha mãe.

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