05 de outubro de 2008
N° 15749 - DAVID COIMBRA
Gravata, sol forte e céu azul
Havia uma gravata em volta do meu pescoço, e isso me agoniava. Porque, cara, eu estava no Rio de Janeiro, todo aquele sol, as pessoas indo à praia e sorvendo chopes cremosos nos balcões dos botecos e comendo bolinhos de bacalhau e caminhando com manemolência, sabe como o carioca caminha com manemolência.
Oh, o Rio todo anda de bermudas e chinelos de dedo, quem veste paletó, como eu vestia, é um bocó.
Sentia-me um bocó.
Mas tinha de entrar em um paletó, porque ia entrevistar o governador do Estado, ninguém menos do que o engenheiro Leonel de Moura Brizola, o próprio.
Ou, pelo menos, tentaria entrevistar o Brizola. Era 1991. Estava preparando uma grande reportagem sobre os 30 anos da Campanha da Legalidade.
Ora, para escrever a respeito seria indispensável falar com o Brizola, que, afinal, havia sido o protagonista da coisa toda. O problema era que o Brizola, por algum motivo, não queria dar entrevista sobre o assunto. Não queria indispor-se com os militares, algo assim.
Durante um mês, liguei mais de 80 vezes para os assessores do governo do Rio. Oitenta vezes, por Deus. Em vão. Brizola não queria falar mesmo. Até que um assessor me disse:
– Quem sabe tu vens aqui tentar a entrevista em pessoa?
Imaginei que seria a única forma de conseguir a reportagem, mas como convencer o jornal a me dar a viagem sem ter certeza de que traria o material? Resolvi arriscar: menti para o diretor de redação que havia marcado com Brizola.
Sabia que, se não conseguisse a entrevista, provavelmente seria demitido, mas, puxa, tinha de confiar na minha capacidade de convencimento.
Fui.
Foi por isso que me meti naquele terno, apesar do azul do céu, do verde do mar, do calor e dos biquínis sumários das cariocas, tudo aquilo.
E nem assim o Brizola aceitou conceder-me entrevista. Já havia dois dias que não saía da ante-sala do gabinete do governo, e nada.
O Brizola saía e me via ali, chegava e me via ali, abria a porta e me via ali. Mas ele realmente não queria falar sobre a Legalidade. Eu suava com abundância dentro daquele terno, desesperava-me só de pensar no meu retorno a Porto Alegre com o bloco em branco, mas decidi que não desistiria.
Os secretários de Estado, os assessores, todos eles já tinham se tornado meus amigos. Viam-me sentado na salinha maldita e logo queriam saber:
– Conseguiu? Eu balançava a cabeça, desolado. Eles:
– Ooooh...
Um dos tais chamava-se Fernando Brito. Era o assessor de imprensa principal do Brizola. Fora quem havia sugerido que eu viajasse. No terceiro dia, esse Fernando Brito chegou para mim naquela salinha e, talvez por compaixão, propôs:
– Ei, levanta daí e vamos almoçar num lugar bacana que conheço.
Aceitei, que mais fazer? Saímos a pé. – É pertinho – disse o Brito.
Pertinho, de fato. Caminhamos poucos metros, até o endereço ao lado, a sede do Fluminense, o célebre Estádio das Laranjeiras. Entrando naquele lugar, meu coração, até então confrangido, aliviou-se de imediato.
A temperatura era amena, por conta das sombras das árvores que se erguiam em toda parte. Os passarinhos cantavam preguiçosamente de cima dos galhos.
Tudo era suavemente belo e tranqüilo. Sentamo-nos no restaurante, numa mesinha ao ar livre, e pedimos chopes. Os garçons nos atendiam com cordialidade e simpatia. A velocidade era outra, lá dentro. Parecia que tínhamos voltado no tempo.
Adejando pelas Laranjeiras estava o espírito das moças que, no começo do século 20, iam ao estádio debaixo de chapéus floridos e, nervosas nas arquibancadas, torciam as luvas cada vez que seu time atacava. Por isso, foram chamadas de “torcedoras”, sendo essa a origem da palavra torcedor, isso até já contei.
Mas nas Laranjeiras também deambulava o espírito de Marcos de Mendonça, o goleiro que jogava com uma fitinha roxa prendendo o calção. E também o de Carlos Alberto, mulato que, para parecer branco, empoava o rosto com pó-de-arroz antes de entrar em campo.
E quase se podia ver Roberto Rivellino, o Patada Atômica, gingando sobre seus pés número 37 e atrás de seu bigodão de Emiliano Zapatta. Todos esses pensamentos me enterneceram, ao almoçar nas Laranjeiras, naquela tarde quente do Rio De Janeiro.
Por isso, agora, torço para que o Fluminense permaneça na primeira divisão. Pela tradição, pela história, por toda a sua veneranda dignidade, o Fluminense merece.
Ah, consegui entrevistar o Brizola, afinal. Não sem algum sofrimento, não sem alguma dor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário