Foge, neném, que os Cucas vêm pegar
A condenação das vítimas de abusos não prescreve.
1º.mai.2023 às 4h00 - Folha -
Não faltam figuras mitológicas nas nossas canções de ninar,
nem inocentes bichos-papões na vida real para tirar o nosso sono. Não estou me
referindo a uma pessoa específica, mas a todos os Cucas, homens aparentemente
do bem, bons filhos, bons maridos, honestos e trabalhadores, e que, por algum
desvio, deixam o lado bicho aflorar e são "compelidos" a praticar
abusos.
Homens que por uma fraqueza movida pela própria virilidade
—ou alguma loucura qualquer—, que nem percebem que estão cometendo a violência
ou, quando percebem, a justificam. "Mas foi ela que me provocou",
"ela também queria", "ela bebeu demais", "eu bebi
demais", "ela que veio para o meu quarto", "com uma roupa
dessas, o que mais ela queria?" e tantas outras escusas.
A escolha do Corinthians ao contratar um técnico condenado
por um estupro coletivo praticado em 1987, na Suíça, levantou a bola para o
debate. Assim que saiu a contratação (e junto com ela as notícias), meu filho,
corintiano, 13 anos, a mesma idade que tinha a menina quando foi vítima da
violência, perguntou: "Pode isso?".
O técnico, um homem branco de meia idade, veste camiseta
branca e boné preto, sentado a uma mesa. Ele fala ao microfone em frente a um
fundo com nomes e marcas de patrocinadores do time.
O ex-técnico do Corinthians, Cuca, na entrevista coletiva em que foi apresentado no time - Rodrigo Coca - 21.abr.23/Agência Corinthians
Não sou árbitra para julgar se era caso de cartão vermelho;
o que sei sobre o caso é o que li nos jornais. Concordo que o time precisava
urgentemente de um bom técnico. Mas não fui capaz de relativizar os fatos —e
não tive nenhuma intenção nesse sentido. A vontade que tive foi de responder
"não, não pode isso". Contudo, posições contundentes não fazem
ninguém pensar. Respondi de maneira inversa e primária, dentro da realidade de
um menino, para que ele próprio respondesse ao seu questionamento, tentando
fazê-lo entender onde começam e o que está por trás de tais comportamentos.
Menos de uma semana depois, veio a resposta concreta: o
pedido de demissão. Acontece que a simples saída do treinador não resolve a
questão, pois ela é resultado de um problema estrutural. É como flagrar o
cônjuge prevaricando no sofá, e tirar o sofá da sala.
Cuca não é uma pessoa perversa, não é um monstro, não é um
sociopata. É um homem comum. E é justamente esse o maior problema. Ele (diz
que) não se lembra do episódio: faz sentido, porque atos naturais não ocupam um
espaço especial na memória das pessoas. E é justamente isso o que mais choca.
Tratar uma violência como normal é assustador para nós, mulheres. A vítima tem
hoje 49 anos e com certeza se lembra dos momentos aterradores, que passaram
despercebidos pela memória dos jogadores. Os agressores foram condenados, mas
não cumpriram a pena. Foi ela, a vítima, a condenada, uma condenação
irreversível e imprescritível.
No filme "Les Choses Humaines", do genial Yvan
Attal, inspirado no romance de Karine Tuil que retrata uma suposta violência
sexual, o pai do acusado, machista inveterado, diz algo como: "foram só 20
minutos, 20 minutos não podem estragar a vida do meu filho". O que dirão,
então, as mães das crianças vítimas de violências sexuais sobre esses minutos
eternos de uma violência?
O bê-á-bá da educação tem que ser ensinado cedo, todos os
dias. Pois é desde cedo que se aprende a ser homem de verdade, senão
dificilmente se conseguirá aprender depois. Aprende-se a ser homem quando se
aceita os próprios limites; quando se entende que não é a força que conquista;
quando se compreende que mulheres têm o mesmo direito de vontade dos homens;
quando se incorpora a ideia de que mulher não é troféu, não é objeto para
satisfazer um ego murcho. Precisamos de um século para derrubar a cultura
equivocada e torta, não só na cabeça dos homens, mas também na cabeça de muitas
mulheres que aceitam abusos –algumas dentro das próprias casas– sem nem sequer
perceberem que estão sendo violadas.
O técnico Cuca pretende provar a sua inocência, e tem esse
direito, apesar da conclusão da justiça suíça. Torço para que ele se livre da
sua história, condenando, ele mesmo, o homem que já foi um dia. Seja capaz de
assumir suas fraquezas e as transforme numa força de combate à violência contra
as mulheres, mostrando, assim, que hoje é um outro homem. Torço para que todos
os jogadores que o abraçaram no último jogo abracem também essa causa e criem
um novo pacto de masculinidade. Torço, enfim, para que seja dado o pontapé
inicial para que aconteça a virada desse jogo.
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