segunda-feira, 22 de maio de 2023



21/05/2023 - 16h44min
Fabrício Carpinejar

Culpa de ser bonito 

Acredito que conquistei minha esposa pelo perfume. Fico feliz que a fragrância saiu de linha e não é mais vendida. Já não existe o risco de concorrência.

Eu nunca fui bonito. Não tenho sequer como imaginar o que é ser bonito. Busquei ao longo da vida diminuir o estrago. Eu me ajeito o máximo possível. Eu me obrigo a ser limpo e cheiroso, cuidar da aparência, lustrar os sapatos ou manter os tênis novos. Acredito que conquistei minha esposa pelo perfume. Fico feliz que a fragrância saiu de linha e não é mais vendida. Já não existe o  risco de concorrência.

Dou valor a uma gola branca engomada, a uma roupa bem passada, a sair nos trinques. Zelo pelas bainhas da calça e guardo os botões extras que vêm no pequeno envelope na hora da compra.

Não tenho medo de dizer quando um homem é bonito. O senso estético não tem relação alguma com atração. Reynaldo Gianecchini é bonito. Rodrigo Hilbert é bonito. Cauã Reymond é bonito. O óbvio mostra a sua cara. Assim como meu amigo cantor Renato Godá. Só que ele inventou de sentir culpa por sua beleza e decidiu se enfear.

Passamos dois anos separados do contato presencial pela pandemia, e ele apareceu sob a forma rural de eremita na montanha. Na verdade, até entendo o que o afligiu. Não foi preguiça, ou desleixo súbito, ou um flerte com a extravagância, ou uma adolescência tardia, de quem desafia os padrões majoritários do comportamento, mas um desejo sincero de poeta, de mostrar a verdade de sua inteligência por trás da fisionomia simétrica e bem-acabada. 

O bullying que ele sofre é o contrário do meu. Se as pessoas se afastam de mim pela primeira impressão, as pessoas não exploram nele a segunda impressão. Ele chama atenção pelo motivo errado. Não gostaria de ser cultuado pelos traços, mas pelos rabiscos iluminados de suas canções. É o receio de não ser reconhecido por aquilo que importa: o dom da sua voz, a coragem do palco.

De repente, o galã de topete invencível, de pele macia, de lábios de blues, aparece com uma barba até o pescoço, com fios soltos que nem poncho velho. Levei um susto. Ele estava pior do que eu, o que é muito difícil de acontecer. E, para agravar o quadro de abandono, usava rabo de cavalo. Quando um homem apela para o rabo de cavalo, perdeu qualquer resquício de amor-próprio. Diferentemente do coque, que tem seus ares de quimono.

Renato apresentava-se irreconhecível. Ele sempre cultivara a atmosfera cult, mas naquele momento tinha ultrapassado os limites mambembes. 

Falei para ele parar com essa bobagem de se destruir, de boicotar a autenticidade do seu esplendor facial. Fui duro e persuasivo, mas, ao mesmo tempo, macio e bem-humorado, como um feio costuma ser. — Aproveite enquanto é belo. Na velhice, seremos todos parecidos sem esforço.  A conversa fez efeito. Não o pretendido, mas ele já melhorou consideravelmente.

Ainda não cortou os cabelos, ainda não se livrou da decadente Maria Chiquinha, da estranha gominha, mas surgiu de bigode. É a primeira etapa da ressurreição. Em promessa no fio do bigode já posso confiar.

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