sábado, 20 de maio de 2023


20 DE MAIO DE 2023
PERFIL

A VOZ DO TAMANHODO MUNDO

Inesperadamente, um canto doce e harmonioso se prolifera pelo Jardim Lutzenberger na Casa de Cultura Mario Quintana. É uma tarde nublada, e os visitantes no local são surpreendidos com uma performance suave e ao mesmo tempo intensa. Eles silenciam e se voltam absortos para a voz. Que voz. Ao interpretar uma música em uma sessão de fotos para ZH, Luiza Hellena parou o tempo por ali.

O tempo, aliás, correu bastante para que a cantora e compositora finalmente gravasse seu disco de estreia. Com 78 anos, ela prepara o primeiro álbum por meio do edital Natura Musical 2022. O projeto intitulado Dona Luiza Hellena e a Velha Guarda da Praiana - Uma Voz, Um Encontro prevê não só um disco, mas também a gravação de um clipe e um show presencial com transmissão online.

Antes disso, uma amostra: a artista protagoniza o espetáculo Luiza Hellena, Uma Voz, no próximo sábado, dia 27, na Fundação Ecarta, na Capital. A entrada é franca, e também haverá transmissão ao vivo pelo canal do YouTube da instituição. Acompanhada de Silfarnei Alves (violão) e Heleno Goulart Rodrigues (percussão), ela cantará sambas, serestas e canções da MPB, além de seu trabalho autoral.

Luiza é uma das vozes negras da noite de Porto Alegre que atravessaram décadas cantando pelos bares da cidade, além de ser lembrada por sua atuação no Sindicato dos Músicos do RS (Sindimus-RS) pelos profissionais da área, mas seu potencial ficou invisibilizado. Sempre às margens.

Responsável pela produção do projeto contemplado pela Natura, além de atuar na produção do disco, o músico e pesquisador Paulinho Parada abordou a história de Luiza em sua dissertação de mestrado intitulada "Nós da noite: memória, esquecimento e atividade musical profissional em Porto Alegre", da pós-graduação em Música da UFRGS. Em 2021, ele dirigiu o curta documental Luiza Hellena - Uma Voz (disponível no YouTube), que venceu o Prêmio Açorianos de Música 2022 na categoria clipe do ano. Segundo o realizador, a produção tinha como finalidade refletir sobre a invisibilidade da mulher negra.

- Vi a força que ela tinha em sua história - atesta Parada sobre a ideia de trabalhar com a cantora.

Natural de São Lourenço do Sul, no sul do Estado, Luiza migrou ainda pequena para Pelotas. A artista crê que tenha nascido com o dom para a música, algo que a acompanhou desde o berço. Ela começou a cantar para valer aos 13 anos, tendo participado, naquela época, de um concurso da Rádio Cultura. Ficou em primeiro lugar, passando a integrar o casting de cantores da emissora pelotense. Porém, a atividade artística não era bem aceita pela família.

- Era penoso para mim porque minha mãe não aceitava - relata. - Eu tinha de me comportar muito bem para poder ir semanalmente cantar, aos domingos, em um programa de auditório.

Luiza salienta que, naqueles tempos, a menina que cantasse era "mal falada". Recorda que levava "surras homéricas" da família por cantar. Mesmo assim, tudo o que mais queria era ser cantora. E ela não via nada de errado nisso.

Aos 16 anos, Luiza saiu de casa rumo à Porto Alegre para realizar seu sonho. Tendo vivido na Restinga e na Medianeira, estabeleceu-se na Vila Farrapos há 35 anos. Porém, ao chegar à cidade ainda nos anos 1960, quebrou a cara:

- Não sabia nada da vida. Descobri que cantar não era glamour, era luta. Eu não conhecia ninguém, ninguém me conhecia, era uma menina. Passei muito trabalho.

Foi aos 16 que ela teve o primeiro filho, Cláudio Luís. Foi mãe solteira. O segundo de seus dois filhos, Otone, viria três anos depois. Aos 19, ela se casou e deixou os palcos. O marido a proibiu de cantar.

- Ele tinha o mesmo pensamento arcaico, de que mulher cantora era mulher da vida. Preconceito enorme - queixa-se. - Fiquei sem cantar enquanto estive casada. Era um período dificílimo, quando tinha oportunidade, lá estava eu gorjeando, e ele ficava apavorado.

Poucos anos depois, quando Luiza já tinha 27, o matrimônio chegou ao fim. Então, ela se jogou na música. Passou a cantar na noite no início da década de 1970. Com um repertório de MPB, samba, samba-canção e o que ela define como "música de fossa" ("muito de Lupicínio Rodrigues"), a cantora se apresentou ao longo do tempo em bares e casas noturnas como Clube da Saudade, Sandália de Prata e Encouraçado. Também viajava para se apresentar no Interior, em outros Estados e até no Exterior - o que inclui passagens por Argentina, Uruguai e México. Ainda, marcava presença em programas de rádios.

- Queria voltar naquele tempo. Me sentia valorizada - suspira. - Depois de tudo, sigo achando que a música me eleva. Sempre digo que cantar é orar duas vezes. Cantando a gente viaja, se realiza, vive amores. É uma utopia que vivemos.

Luiza também cantava em bailes de Carnaval, chegando a ser intérprete de escola de samba em São Leopoldo. Em Porto Alegre, adotou a Praiana como escola do coração por ter pelotenses entre os fundadores.

Com tanta rodagem, resolveu entrar no sindicato dos músicos em 1993, chegando a integrar quadros administrativos da organização. Define-se como "extremamente radical" quanto ao respeito ao músico.

- Sempre fui de defender a classe, lutar pelos nossos direitos, sou meio rebelde (risos). E sou meio estourada. Me reconheço como difícil.

Para o antigo companheiro de palco Carlinhos Santos, 67 anos, é o contrário. O violonista garante que o bom humor dela é a primeira característica que chama atenção de quem a conhece. Ele também a define como obstinada por sua atuação no Sindimus:

- A Luiza é a própria figura quando se fala em sindicato dos músicos, sempre dedicada e maravilhosa. Fez de tudo para manter o sindicato atuante e fortalecido, mesmo nos momentos de dificuldades financeiras. Isso os músicos devem a ela.

Quando a noite não rendia, Luiza se virava. Diz que a música não é um conto de fadas. Então, foi cabeleireira, costureira, datilógrafa, recepcionista, telefonista e doméstica. Aprendeu de tudo um pouco.

Com previsão de lançamento para o segundo semestre, o disco de Luiza está em pré-produção. O álbum terá participações da Velha Guarda da Praiana - o que inclui o violonista Silfarnei Alves. Além de diretor musical, produtor e tocar violão 7 cordas, Paulinho Parada também é o responsável pelos arranjos, junto a Edu Neves (Zeca Pagodinho e Elza Soares). Segundo Parada, o cavaco fica com Fábio Azevedo Cabelinho, a percussão, de Manoel Macedo e Maicon Paquetá, além dos percussionistas da noite Bebinho e Maciel. Com foco no samba e no samba-canção, o projeto reunirá composições emblemáticas que fizeram parte da história da Praiana - como As Alegrias da Vida e Janaína -, mas também da trajetória de Luiza.

Ela também deve gravar Cantando a Vida, de Paulinho Parada; Minha Dor, de Nêgo Izolino; e Iemanjá, de Durque Costa Cigano. Mas a verve compositora de Luiza também será evidenciada no álbum. Ela lembra que começou a criar suas próprias canções nos anos 1980, geralmente motivada por desilusões amorosas.

- Componho mais quando levo uma guampa. Aí é meu chão - diverte-se. - Sou taurina, portanto sou extremamente passional.

Em Aviso Prévio, por exemplo, verbaliza sobre um parceiro ausente ("Eu já cansei de viver com todo seu descaso/ Você só vem em casa às vezes por acaso/ Então nosso caso não tem solução") e dá um "grito de independência" ("Se eu me arrepender amanhã, paciência/ Hoje sem brigas eu quero mudar").

- Tive um relacionamento que durou 19 anos. Como gosto de ser enganada! (Risos.) Uma hora eu cansei e dei o xeque-mate. Dei um aviso prévio para ele - brinca.

Já em Justiça, ela declara: "Cansei das injustiças que você me fez/ Mas não farei justiça com as minhas próprias mãos/ Um dia a justiça divina irá julgar você/ Portanto, agora, não adianta me pedir perdão". Ao lembrar sobre o episódio que inspirou a canção, Luiza reflete que os homens "culpam as mulheres das coisas que eles fazem".

- Quando reagimos, a errada é sempre a gente - aponta. - Quando o encurralei, ele disse que estava com intenção de reverter nossa situação. Respondi que não, "cansei das injustiças que você me fez". Tive problema de saúde, ele não ia em casa. Assim nasceu Justiça.

Como compositora, Luiza segue o legado de Lupicínio Rodrigues, versando sobre desamores, porém na perspectiva feminina. Umas das faixas previstas para o disco homenageia o compositor da Ilhota: Lupi - Sua Arte, Sua Glória. Há também um blues intitulado Longa Espera ("Que espera longa/ Mas o tempo não conta/ Peço passagem/ Ei de chegar, ei de chegar"), outro petardo da dor de cotovelo.

- Cantar o amor é muito fácil. Agora, ao cantar a tristeza, tu põe mais a alma, aí que sai melhor - avalia. - Às vezes a gente está cantando uma música triste de doer, daí você se dá conta, bah, mas o cara me fez isso. "Bem que eu podia chorar, mas não, tu não pode chorar, vou botar na voz." Dá tudo de ti. Tu quer mostrar que foi apaixonada. Isso enriquece a arte.

Presente no disco e no show da Ecarta, Silfarnei tem 66 anos, dos quais calcula conhecer a Luiza há quase 40. Os dois se apresentam juntos esporadicamente. Para o violonista, a cantora tem bom gosto ao escolher o repertório, que costuma permear nomes como Elis Regina, Alcione e Lupicínio. Estima, em especial, a interpretação que ela dá a Sonhos de um Palhaço, sucesso na voz de Antônio Marcos.

- Ela é uma das últimas grandes cantoras - diz Silfarnei. - Não que a gente não tenha boas cantoras agora, mas aquele jeito dela de cantar, aquela elegância, aquele respeito à música, deixa marcas.

A designer de moda Suelci Silva conheceu Luiza por meio da Praiana. Com 64 anos e integrando da Velha Guarda, ela é autora de temas enredos das escolas de samba. Suelci frisa que a companheira de escola leva as pessoas a viajar com seu o timbre e a doçura da voz.

- Isso é o diferencial da Luiza. Há muitos cantores, mas os que te fazem viajar são raros. A leveza dela te inebria, e tu prestas atenção naquela figura mionzinha, pequena, mas com um vozeirão do tamanho do mundo - descreve Suelci.

O músico, compositor e produtor cultural Henrique Mann observa que a artista tem boa presença de palco e segurança da execução. Ele assegura que Luiza foi uma das melhores cantoras com quem trabalhou em estúdio - na coletânea Nós da Noite, em que canta Justiça. Destaca a afinação da artista:

- O tempo passa e ela continua com a voz forte, mesmo tendo problemas de saúde, enfrentando muitas situações adversas, sua voz adapta-se e não perde a afinação. Acho que isso tem muitas explicações, como o fato de ela sentir-se feliz quando canta, a experiência de cantar por muitos anos e nas circunstâncias mais variadas, que tornou-a muito experiente. Ela sabe escolher os caminhos mais seguros.

Prestes a chegar aos 80, Luiza lida com diabetes e insuficiência renal. Sofreu um infarto em 2021 e, a parti daí, passou a fazer hemodiálise. A cantora, então, vê o disco como um projeto de vida que chega bem a tempo.

- Nunca deixei meu sonho de lado, nunca morreu, nunca deixei de acreditar. Veio agora um prêmio. Fico emocionada. É ainda melhor receber esta homenagem agora, porque ainda estou viva e vou colher os frutos - anima-se.

Para Suelci, Luiza sempre foi uma pessoa à frente de seu tempo. - Abandonar o sonho ao casar, ter filhos e depois voltar para o sonho... Ela é uma pessoa que se reinventa a cada instante - define.

Parada relata que Luiza crê que a história dela é uma história comum. De uma mulher que casou cedo, constituiu família, que foi impedida de cantar, era surrada por ser cantora de rádio - algo que ela entende ser só mais uma história corriqueira. Mas, para o produtor, não se trata apenas disso:

- Ela é uma voz que representa milhares de vozes invisibilizadas. Trata-se de uma representatividade.

Depois que Dona Luiza interpretou As Alegrias da Vida, samba-enredo da Praiana no Carnaval de 1980, no Jardim Lutzenberger, ela foi aplaudida pelos visitantes ali presentes.Ninguém a conhecia. Ela parou o tempo por ali e o devolveu. 

WILLIAM MANSQUE

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